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A lutadora argelina Imane Khelif - que ganhou hoje a medalha de ouro no peso-médio feminino - foi a protagonista de uma polêmica cercada por equívocos científicos e interpretações subjetivas à respeito do seu gênero e sua adequação esportiva na competição, mas ela foi respaldada pela organização dos Jogos e sua situação jogou luz sobre o tema, que este artigo aprofunda em detalhes. AP Photo/Ariana Cubillos

Campeã olímpica em Paris, boxeadora argelina é pivô de polêmica que reflete questão universal: como proteger todos os gêneros no esporte?

Era questão de tempo para estourar uma grande polêmica sobre gênero nos Jogos Olímpicos. Ela explodiu este ano, em Paris, e reluzente como o ouro. O estopim foi no começo dos Jogos, na luta entre a boxeadora argelina Imane Khelif e a italiana Angela Carini, na primeira fase da disputa pela categoria peso-médio feminino. Após de 46 segundos de luta, a boxeadora da Itália desistiu. Ela não foi nocauteada, nem levou nenhum knockdown. Desistiu após sentir que a sua oponente desferiu golpes “fortes demais”. A reação de Angela Carini reacendeu a polêmica a respeito do gênero/sexo de Khelif. Uma discussão que ganha contornos planetários uma vez que nesta sexta-feira, dia 9 de agosto, a argelina ganhou a medalha de ouro na sua categoria. A argelina Imane Khelif, que foi “acusada” de ser transexual, é campeã olímpica de boxe feminino.

Antes do final épico que reverbera em todos os jornais os problemas de Khelif - que oficialmente nasceu mulher, foi criada como mulher e já tem no cartel de lutadora profissional diversas vitórias e derrotas para mulheres - começaram em 2023, no Campeonato Mundial Feminino na Índia. Lá, pela primeira vez a algeriana foi declarada não elegível para a categoria feminina, e foi desclassificada. Nos Jogos de Paris, com essa informação vindo à tona após a desistência da italiana, vários portais de notícias noticiaram que a atleta era trans. E esse foi o primeiro grande equívoco.

A IBA – Associação Internacional de Boxe, fez uma conferência para elucidar a polêmica, mas deu declarações controversas. Eles revelaram os motivos pelos quais duas boxeadoras falharam no teste de elegibilidade para a categoria feminina.

O primeiro teste das boxeadoras Imane Khelf e Lin Yu-ting foi em 2022, e surgiu por preocupação de pessoas envolvidas (atletas, treinadores e médicos). O resultado foi inconclusivo. Quando repetido no Mundial de 2023, a IBA declarou que elas falharam e por isso foram desqualificadas.

O critério que o regulamento da IBA exige para mulheres é: indivíduos com cromossomos XX. As declarações, um pouco confusas, foram de que ela tinha o par cromossômico XY. Em outro momento, a IBA também relatou que Khelif tinha “testosterona alta, como homens”. link text A crença de que só existem dois sexos, cuja configuração genética é XX para mulheres e XY para homens, também é equivocada. Há muitos anos sabe-se que existem pessoas intersexo que não correspondem a essas configurações típicas.

Não é a primeira vez que ocorre esse tipo de situação. Para compreender o estado atual das questões trans e intersexo no esporte, retomo como tem sido feita a discussão de critérios para categoria feminina. Em 2021 eu concluí minha dissertação de mestrado que adentrou nesse tema e pode situar a discussão.

As atletas mulheres com cromossomos XY começaram a ser identificadas em meados dos anos 1960 a partir de testes genéticos que buscavam encontrar informações sobre o cariótipo ser XX ou XY. Ao realizar o teste, as atletas mulheres que falharam eram surpreendidas com essa informação.

A descoberta afetava as relações das atletas com o esporte e poderia trazer estigma e preconceito. Geralmente, elas eram instruídas a sair da competição alegando lesão, tamanho era o estigma e a pressuposição de má-fé.

A razão mais comum para que aparecesse o par cromossômico XY em mulheres era a Síndrome da Insensibilidade Androgênica (SIA), que pode ser completa (SIAC) ou parcial (SIAP).

Em resumo, essa síndrome implica que a pessoa não tem receptores de hormônios androgênicos (como testosterona e DHT), e portanto, não reage ao estímulo deles desde o desenvolvimento uterino. Quando a insensibilidade é completa, resulta em uma pessoa com o cariótipo XY e com genitália externa feminina, sem útero e ovários e com testículos internos.

Em muitos casos a pessoa é designada mulher no nascimento e vive como mulher saber que tem esse cariótipo. Na literatura médica, elas já foram compreendidas como mulheres XY, não homens. Devido à insensibilidade a andrógenos, afirmar que sua testosterona alta traria vantagens é uma contradição, visto que os efeitos dela e de outros andrógenos não ocorrem.

Existem várias situações de mulheres intersexo que podem resultar em testosterona mais alta. Para afirmar que elas têm uma vantagem no esporte, sugere-se que sejam feitas pesquisas observando o desempenho, e não somente características corporais. A proporção da diferença de desempenho deve ser quantificada considerando que é da natureza do esporte que existam algumas diferenças entre atletas.

Em 2015, foi publicado um Consenso do COI, em que vários/as especialistas foram consultados/as para propor os critérios para atletas intersexo e/ou hiperandrogênicas.

A compreensão era de que o limite de testosterona para a categoria feminina deveria ser de 10 nmol/L. As mulheres trans teriam de fazer tratamento hormonal durante no mínimo 12 meses.

As atletas intersexo que tivessem valores altos de testosterona deveriam fazer tratamento para reduzir os níveis. Homens trans deveriam apresentar laudo médico afirmando que fazem uso de testosterona por motivos médicos, pressupondo-se níveis de testosterona dentro da faixa considerada normal entre homens cisgênero (homens que não são trans).

Outro elemento da discussão é a diferença de percepção a partir da raça e etnia. Mulheres do Sul Global não brancas estão mais suscetíveis a serem alvo desse tipo de investigação de gênero, já que a partir de 1999 esses testes só seriam realizados em atletas “suspeitas”.

Assim, mulheres que se expressam de forma mais masculina são alvos mais frequentes. O fator racial contribui para essa desconfiança, uma vez que o parâmetro hegemônico sobre como a sociedade ocidental percebe o gênero vem de referenciais brancos e europeus.

Em 2021 foi publicado um Guia (Framework) pelo COI atualizando as diretrizes em relação a atletas trans e intersexo. A grande diferença é que ele não padroniza uma regra fisiológica. Ele sugere que cada federação esportiva analise e faça seus critérios de acordo com a característica individual do seu esporte. Ressaltando que devem ser ancoradas em dados e pesquisas relevantes.

Outra atualização importante é destacar princípios de não discriminação por variações de gênero. Sugere práticas para produzir essas regras sem prejudicar atletas. Demanda que as federações consultem as pessoas afetadas por essas regras para evitar consequências negativas, bem como proteger as informações médicas e somente expor sobre falhas na elegibilidade se for consentido pela atleta.

Apesar desse guia, ao entregar para cada federação a responsabilidade de criar sua regra, abre-se a possibilidade de regras excludentes, com base em pressuposições e pesquisas tendenciosas.

A postura da IBA em relação às duas boxeadoras foi totalmente contrária ao Guia do COI. O regulamento exclui as boxeadoras por serem supostamente pessoas intersexo, mas que eles chamaram de “homens”. Não faria sentido colocá-las na categoria masculina, mas na lógica binária, seria a única opção. Não foram apresentados dados ou pesquisas relacionando o tema com esse esporte.

Questões trans e intersexo têm grandes diferenças, mas em relação ao preconceito e ódio à existência, são bem parecidas. Precisamos produzir conhecimentos sem um viés transfóbico ou intersexofóbico. A visão binária sobre os corpos sexuados pode produzir pesquisas enviesadas, assim como já houve racismo e machismo na história da ciência.

A batalha científica para decidir se atletas intersexo tem uma vantagem injusta foi permeada por polêmicas. Pesquisas utilizadas para sustentar esse argumento tiveram falhas apontadas por pesquisadores/as. Também foram feitos questionamentos éticos e metodológicos sobre elas, sugerindo que não mantiveram a integridade científica. A impressão é de que é mais importante manter a estrutura “sexo” binária e bem definida do que manter procedimentos científicos.

O resultado disso são as múltiplas violências pelas quais pessoas intersexo e pessoas trans têm passado em situações como a agora ocorrida com a boxeadora argelina.

Existe um temor de que as atletas intersexo e atletas trans venham a colocar em risco a segurança de atletas cisgênero. A segurança de todas as pessoas é o objetivo principal, almejado também no Guia publicado pelo COI. Até o momento, as únicas atletas que certamente tiveram sua segurança posta em risco foram as atletas intersexo e as atletas trans, devido ao rechaço às suas existências.

Como podemos avançar nessa questão? Pesquisas envolvendo atletas diversos/as, acompanhando o desempenho esportivo (e não só características corporais) precisam ser realizadas, garantindo-se ausência de viés transfóbico e intersexofóbico. Principalmente, devemos ser capazes de reconhecer os méritos competitivos de atletas trans e intersexo.

Suas vitórias não são somente fruto de um hormônio e de um tipo de massa corporal, e sim um conjunto de fatores, incluindo a habilidade técnica e esportiva. O debate binário de gênero retira a capacidade de reconhecer seus talentos esportivos.

Devemos reconhecer que pessoas trans e intersexo existem e devem ter os mesmos direitos. Entender quem são essas pessoas, ouvi-las e produzir uma matriz epistemológica que dê conta de incluir essa visão de mundo é uma tarefa urgente.

Estudos sobre cisgeneridade e cisnormatividade apontam direções nesse caminho. A segurança de mulheres no esporte também inclui não excluir e nem condenar mulheres por características corporais e sociais. É impossível acolher a população trans e intersexo com noções limitadas e binárias de que “homens são XY” e “mulheres são XX”, uma vez que está evidente que existe um espectro de possibilidades de existências.

O pódio olímpico precisa evoluir para se tornar um espaço coletivo que abarque todas as identidades e que seja seguro para todes.

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