É comum que a ciência evolua a passos controlados e, de certa forma, previsíveis, que incrementam, consolidam e expandem ideias já existentes. Um exemplo fascinante desse processo é o desenvolvimento da tecnologia de imageamento por Ressonância Magnética (MRI), amplamente utilizada hoje em hospitais para detectar tumores, danos internos nos tecidos e investigar diferenças no tecido cerebral.
Tudo começou em 1946, quando pesquisadores de universidades norte-americanas descobriram e exploraram o fenômeno da ressonância magnética nuclear (RMN). Naquela época, poucos poderiam prever que o estudo das características de spin da matéria levaria, décadas depois, a avanços significativos na área da saúde. Inicialmente, a RMN foi aplicada no desenvolvimento de espectrômetros, instrumentos científicos usados extensivamente em química analítica.
Foi apenas entre 1971 e 1981 que pesquisadores, médicos e físicos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha realizaram trabalhos pioneiros para desenvolver a técnica de imagem por Ressonância Magnética. Em 1988, a MRI já havia alcançado uma penetração significativa em seu mercado primário: a medicina clínica. Ela superou os scanners de tomografia computadorizada (CAT) como a ferramenta de diagnóstico preferida para várias doenças, especialmente aquelas envolvendo danos aos tecidos moles do corpo.
A tecnologia de MRI foi possível graças à combinação de estudos sobre as características de spin da matéria com pesquisas em matemática e física de magnetos de alto campo. Seu desenvolvimento gradual, que levou décadas, resultou em uma tecnologia verdadeiramente revolucionária, transformando radicalmente nossa capacidade de diagnóstico médico.
Por outro lado, quando falamos de ciência disruptiva, ela nem sempre é bem-recebida. E não é de hoje. Lá no século 16, Nicolau Copérnico já sofria resistência à sua ideia – então vista como loucura – de que era o Sol, e não a Terra, o centro do Universo.
Para citar um caso mais recente, vale destacar a história da bioquímica húngara Katalin Karikó. Seu esforço de defender e desenvolver as vacinas de RNA mensageiro levou ao seu descrédito e à suspensão de financiamentos – mas, no fim das contas, salvou milhões de vidas durante a recente pandemia de COVID-19 e rendeu a ela o Prêmio Nobel de Medicina no ano passado.
Casos como esses (e há muitos outros) revelam um paradoxo da comunidade científica: ao mesmo tempo em que se busca por novos conhecimentos, por vezes a própria comunidade é um tanto avessa à inovação mais radical. Isso fica claro quando se analisam as barreiras à ciência “maverick”, aquela ciência disruptiva, que rompe barreiras e inaugura novas formas de pensar.
A ciência de fronteira é, antes de tudo, compromissada com a expansão do conhecimento sobre determinado tema – e não necessariamente com um resultado diretamente aplicável. É uma natureza que implica riscos e, justamente por isso, enfrenta dificuldades de financiamento no Brasil e no mundo.
As agências governamentais de fomento à pesquisa, sejam nacionais ou no exterior, frequentemente enfrentam dificuldades para apoiar propostas de pesquisa muito revolucionárias. A lógica por trás disso envolve a necessidade de prudência no uso dos recursos públicos, e de demonstrar de forma mais clara à sociedade qual o destino dos recursos investidos. Isto leva a uma posição mais conservadora, que tende a privilegiar propostas mais solidamente apoiadas em conceitos dominantes em suas respectivas áreas e, portanto, com mais chance de “sucesso”.
Além do financiamento mais escasso, por vezes trabalhos realmente disruptivos acabam enfrentando mais resistência para publicação, seja porque envolvem conceitos ou abordagens experimentais inovadores, porque contestam ideias ou dogmas estabelecidos, ou simplesmente por estarem à frente de seu tempo. Igualmente raras são as instituições dispostas a contratar ou apoiar financeiramente pesquisadores com este tipo de mentalidade “maverick”.
Como vemos, o próprio sistema científico pode, em algumas circunstâncias, inibir a inovação mais radical.
Suas lógicas de recompensa, requisitos para avanço na carreira e oportunidades de apoio são frequentemente baseados na expectativa de que o cientista se aprofunde em seu campo de especialização e que produza em quantidade. Com isso, cientistas que desafiam o status quo, que levantam questões incômodas, mas essenciais para a evolução da ciência, são frequentemente vistos à margem do sistema – não operam dentro dele.
É uma cultura que pode sufocar ideias antes mesmo da escassez de financiamento ser um problema: o próprio pesquisador pode ter um insight, mas logo abandoná-lo, antecipando as dificuldades que enfrentaria para levar a ideia adiante.
Tanto no cenário brasileiro quanto em outros países, uma das soluções para isso passa pela filantropia. No Brasil, ações nesse sentido começaram a ganhar corpo recentemente. Um dos ainda poucos exemplos é o Instituto Serrapilheira que, há sete anos, tem apoiado pesquisadores que desenvolvem ciência básica, incentivando, inclusive, reflexões sobre o risco.
Há cerca de três anos, o Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino lançou a Ciência Pioneira, iniciativa filantrópica de apoio à ciência de fronteira – da qual sou diretor científico. A principal motivação da Ciência Pioneira é viabilizar a execução de pesquisas que tenham um caráter “maverick”: que sejam ousadas, disruptivas e tragam inovação, ao mesmo tempo em que sejam baseadas em abordagens científicas rigorosas.
Para concretizar esse objetivo, a iniciativa já vem desenvolvendo várias ações desde sua criação. Por exemplo, temos agora um edital aberto para jovens pesquisadores independentes de todo o Brasil, que receberão, mediante processo seletivo, R$ 160 mil anuais durante três anos para apoio aos seus projetos. Um recurso flexível que estimula a pesquisa científica livre e permite aos cientistas explorar ideias inovadoras sem as restrições típicas dos financiamentos tradicionais.
Em um movimento mais recente, de apenas um ano, foi organizado o Grupo de Estudos de Modelos de Apoio à Ciência – Gema Filantropia. O coletivo nasceu no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e é majoritariamente mantido pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal. O foco é contribuir para a transformação do financiamento da ciência no Brasil, promovendo a colaboração entre o setor acadêmico e o setor filantrópico.
A organização da iniciativa privada em torno da ciência, é claro, não retira ou diminui em nada a importância do investimento público na área – que é significativo e mantém a pesquisa funcionando no Brasil. A ação filantrópica pode, no entanto, complementar o financiamento à ciência de fronteira, atuando em áreas menos exploradas ou apoiadas, oferecendo maior flexibilidade orçamentária e fortalecendo o ecossistema, entre outras contribuições.
O Brasil produz ciência inovadora e resiliente. Exemplos não faltam – e não faltarão: basta ver a notícia recente sobre Manuel José Nunes, o estudante piauiense que desenvolveu um aparelho portátil e de baixo custo para monitorar a qualidade da água. A invenção rendeu a ele uma premiação na edição 2024 do Stockholm Junior Water Prize, conhecido como um “Nobel da Ciência Jovem”. Com incentivo adequado e boas condições de trabalho, nossa produção científica tem tudo para decolar.