Não há dúvida de que a Lei de Cotas é o mais importante instrumento em favor da garantia do acesso à educação superior por parcelas da população historicamente negligenciadas nas etapas do processo educativo. Ainda assim, mesmo dez anos após a criação da lei, discussões sobre seus efeitos, sua regulamentação e os vários recortes existentes em torno da sua aplicação seguem em curso. Sobretudo quando o tema são as cotas raciais.
Recentemente, com o crescimento das denúncias de que as cotas raciais estavam sendo utilizadas por pessoas que não teriam direito a ela, muitas instituições de ensino criaram as chamadas bancas de heteroidentificação, destinadas a comprovar a origem étnica de alunos postulantes a vagas destinadas a essa cota.
Esse procedimento vem causando muita polêmica. Sua necessidade é contestada pelas mesmas pessoas que consideram o recorte racial das cotas um equívoco. Para elas, as cotas sociais já seriam suficientes e não haveria necessidade do recorte de cor. Ao pensarem assim, porém, elas se esquecem dos quase 400 anos de exclusão das pessoas negras de todas as políticas públicas e de oportunidades no Brasil, até mesmo depois da abolição da escravização.
Como surgiu a heteroidentificação
Quando da discussão e aprovação da Lei de Cotas, os movimentos negros e grande parte das pessoas envolvidas na luta pelo direito das pessoas negras defenderam a simples autodeclaração como o critério para que uma pessoa fizesse jus à utilização do sistema de cotas. Essa defesa permanece até hoje, apesar da necessidade das bancas de heteroidentificação. É necessário destacar a importância da autodeclaração e o significado da heteroidentificação em todo o processo de definição de quem tem direito às vagas de cotas raciais.
Racismo religioso
Ao longo dos mais de 300 anos de escravização ser uma pessoa negra no Brasil sempre teve associação com ideias negativas. A própria Igreja Católica já preconizava, à época, que homens e mulheres de cor preta possuíam um certo tipo de maldição. Sobre isso, o filósofo Riolando Azzi, especialista na história da Igreja Católica na América Latina, chegou a apresentar três versões.
Uma delas, inteiramente baseada na doutrina católica, afirma que os africanos seriam considerados “descendentes de Caim”, o personagem bíblico que, segundo os escritos do Antigo Testamento, seria um dos filhos de Adão e Eva e teria assassinado o irmão Abel. Segundo essa versão, os negros africanos “trariam na carne a maldição divina do primeiro homicida da humanidade”. Ou seja, como punição pelo assassinato do irmão, Deus teria amaldiçoado Caim com uma marca: a negritude da pele. Ser negro, portanto, seria o signo de um pecado que os negros deveriam pagar através do castigo da escravização.
Ainda segundo Riolando Azzi, os escravocratas lusos teriam se aproveitado dessa narrativa para se posicionarem como “justiceiros divinos”: o braço escolhido por Deus para aplicar à raça negra o castigo merecido.
Importante lembrar que estas interpretações eram propagadas a nível popular. Não há como determinar suas origens. Mas é sabido que a Igreja pouco fez para evitar sua disseminação.
Racismo cientifico
A teoria da inferioridade dos negros não atravessou a história apenas sob o ponto de vista religioso. Muito pelo contrário, houve todo um movimento de afirmação dessa inferioridade, que culminou como o chamado racismo científico, cujo ápice aconteceu em diversos países do mundo entre o final do século 19 e primeira metade do século 20. Esse movimento procurava explicar biologicamente as características dos homens, inferindo que os negros seriam inferiores. Era considerado um pensamento “científico” porque foi produzido, à época, por vertentes da antropologia, da sociologia e, em especial, da biologia.
A política do embranquecimento
No Brasil, a partir dessas teorias e com o fim da escravização, iniciou-se uma Política Nacional de embranquecimento.
Essa política consistia em incentivar a imigração de contingentes de trabalhadores europeus, conservar os negros em condições de inferioridade social e incentivar sucessivas miscigenações, reduzindo ao máximo possível a presença de negros e negras no cenário nacional.
Por todo esse período, autodeclarar-se uma pessoa negra significava carregar todas as conotações negativas associadas a essa cor de pele construídas ao longo de 400 anos e que, mesmo depois do fim da escravização, se perpetuaram no Brasil. O embranquecimento da população tornou-se necessário - pensava a elite branca - para que o negro negasse a si mesmo, no corpo e na mente, e assim se integrasse mais rapidamente a uma desejada ordem social em que a pela preta não era bem-vinda.
A origem da Lei de Cotas
O processo de reconhecimento do racismo no Brasil se iniciou a partir da Constituição de 1988. A partir daí vieram a Lei 7.716/1989, que pune todo tipo de discriminação e preconceito, e a Lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana. Apenas em 2012, porém, o processo de reparação pelos séculos de discriminação da população negra começou a tomar forma, com a instauração da Lei de Cotas.
Com ela, pela primeira vez em 500 anos havia uma política pública no Brasil voltada para pessoas negras. Pela primeira vez dizer “eu sou uma pessoa negra” trazia ao emissor da frase algo de positivo: uma recuperação da autoestima negada por tantos anos de opressão. Por tudo isso, a autodeclaração defendida pelos movimentos negros é tão importante.
O início da controvérsia
Porém, com a autodeclaração como única exigência para se fazer jus à política de cotas, veio a discussão: a quem de fato se destinavam as vagas reservadas as cotas, uma vez que muitas pessoas que não eram reconhecidas como negras se autodeclaravam dessa forma?
Se antes as pessoas negras no Brasil buscavam nos fundos dos baús as fotos de um avô, uma tia-avó ou um parente afastado qualquer para tentar se distanciar do fato de serem negros, agora era a vez em que pessoas reconhecidamente brancas perante a sociedade faziam algo semelhante, mas ao inverso, para se dizerem negras e com isso auferirem alguma vantagem oferecida pelo sistema de cotas.
Fraudes na autodeclaraçao
A partir dessa realidade, começaram a surgir denúncias de uso indevido das cotas, e como resposta ao problema muitas instituições começaram a discutir a criação das bancas de heteroidentificação.
Essas bancas se baseiam nas características fenotípicas para definir se uma pessoa tem direito a ocupar uma vaga pelo sistema de cotas. Não se baseiam no critério de ascendência familiar. A pessoa que possui um familiar negro e não apresenta fenótipo negro ou pardo não faz jus às cotas.
É importante salientar que essas bancas não têm o papel de verificar se a autodeclaração feita por uma pessoa é verdade ou não. O objetivo é de representar uma amostra da percepção social sobre determinada pessoa, como ela é vista socialmente.
O papel da reparação
A discriminação racial, a falta de oportunidades e os aspectos negativos já apresentados aqui são baseados no fenótipo e, portanto, são essas pessoas que são objeto da reparação oferecida pelas cotas raciais.
As bancas de heteroidentificação devem ser compostas de forma diversa para que as pessoas que as compõem façam suas análises com o olhar da sociedade em geral.
Ao olhar a pessoa que se autodeclara negra, o que deve ser considerado é o risco que essa pessoa, ao entrar num shopping center ou em algum ambiente mais requintado, tem de ser visto como “suspeito”. Alguém que deva ser acompanhado por câmeras ou seguranças enquanto circula pior estes ambientes. Em outras palavras: o quanto ela desperta nos outros a sensação de que não pertence àquele lugar, e que portanto poder lhe ser hostil.
Ao olhar essas pessoas, a banca vai analisar se em algum momento ela poderia perder a chance de emprego porque o anúncio pedia qualidades subjetivas como, por exemplo, “boa aparência”, uma vez que o conceito de “aparência” ainda está ligado à cor da pela da pessoa.
Por se tratar de uma “política de reparação”, como está bem definido na Lei de Cotas, a heteroidentificação deve atender às pessoas que foram, ao longo da história do Brasil, discriminadas com base no seu fenótipo. A autodeclaração continua sendo muito importante no processo de auto reconhecimento, mas não é suficiente para representar o olhar social. Assim, a heteroidentificação cumpre um papel fundamental para garantir a completa utilização da lei e de seus benefícios por aqueles que carregam na pele as marcas de séculos de discriminação e exclusão.