O resultado eleitoral na Venezuela não foi propriamente uma surpresa. Anunciado no dia 29 de julho pela Conselho Nacional Eleitoral, dia seguinte das eleições, indicava o atual presidente Nicolás Maduro como vencedor, com cerca de 51% dos votos. A trajetória dos últimos meses foi deixando evidente que o governo não estava disposto a respeitar um dos princípios básicos do regime democrático: a lógica da circulação de elites governantes. No entanto, ainda assim, o resultado cria uma situação política complexa e com efeitos globais, regionais e para o Brasil.
Com o descredenciamento de María Corina Machado, ex-deputada pelo Partido Primeiro Justiça, assumiu a liderança da oposição o diplomata de carreira Edmundo González Urrutia, membro da coligação Mesa de Unidade Democrática. Apesar de seu perfil menos político, era considerado vencedor até as pesquisas de boca de urna.
A forma como o resultado foi anunciado, descumprindo os protocolos e, sobretudo, a reação do governo aos questionamentos legítimos, comprovaram os temores. A posse presidencial é prevista para 10 de janeiro, mas a oposição ainda não aceitou o resultado e disponibilizou cópias das atas que comprovariam a fraude.
A disputa se dá em torno do resultado das eleições e as atas tornaram-se seu símbolo. Manifestações nas ruas já levaram a mortes e detenções. Maduro anunciou que María Corina e González hackearam o sistema eleitoral e que devem se entregar à justiça. A máquina repressiva do Estado venezuelano (que se movimenta mais rapidamente do que os processos de negociação e pressão internacional) somada a uma oposição que se mostrou mobilizada e representativa, indicam um caminho conturbado.
O resultado das eleições venezuelanas faz parte de um processo longo de fragilidade democrática, que marcou não apenas a política doméstica, mas também regional. A polarização política, sobretudo após a eleição de Hugo Chavez em 1999, esteve no centro das relações bilaterais e multilaterais na América Latina e Caribe, com grande impacto nos projetos de cooperação e integração regional.
Mecanismos de promoção e proteção democrática - tais como comissões eleitorais e cláusulas democráticas - e de mediação e resolução de conflitos foram desgastados, perderam sua legitimidade. Não existem hoje na região mecanismos institucionalizados para o enfrentamento de crises políticas. Iniciativas ad hoc, tais como o Acordo para Promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais e para Garantia dos Interesses Vitais da Nação, firmado em 17 de outubro de 2023, em Barbados, referido como Acordo de Barbados, têm sido ineficazes.
A polarização política é um fenômeno global. Apesar da ascensão da extrema-direita ser o fenômeno mais recente, a Venezuela é um caso exemplar de autoritarismo de esquerda, onde o discurso da inclusão tornou-se, cada vez mais ao longo dos anos, uma mera retórica. Os elementos emancipatórios do projeto chavista são superados por essas práticas repressivas e autoritárias. Muitas vezes eleições são um procedimento formal mantido por governos apenas para legitimar sua permanência no poder.
A reação internacional às eleições indica como a crise ganhou proporções globais no atual contexto de disputa hegemônica e intensificação de conflitos geopolíticos. EUA e a União Europeia não reconheceram o resultado e demandam a apresentação das atas eleitorais, com base no parecer da comissão de observação eleitoral do Centro Carter e, mais recentemente, do relatório preliminar do Painel de Experts da ONU, publicado no dia 14 de agosto.
De outro lado, China, Rússia e Irã reconheceram imediatamente a vitória de Maduro, indicando uma clivagem de definição em disputa. Alguns apontam uma divisão Norte/Sul, outros entre países democratas e autoritários, outros entre zonas de influência da China ou dos Estados Unidos.
Na região da América Latina e Caribe, a clivagem político-ideológica prevalece: Cuba, Nicarágua, Bolívia e Honduras reconhecem a vitória de Maduro, enquanto que Chile, Uruguai, Costa Rica, entre outros, apontam para fraude. Brasil, Colômbia e México buscam mediar a situação coletivamente.
Alicia Barcena, ex-secretária Geral da CEPAL, busca uma intermediação com os EUA. A Colômbia encontra-se particularmente afetada por fluxos de migrantes e refugiados, assim como pelas relações de Maduro com grupos paramilitares.
Para o governo de Lula no Brasil, que tem como objetivo de política externa retomar a liderança regional, o desafio é enorme, pois a discordância sobre a questão venezuelana permeia a coalizão doméstica construída para derrotar Bolsonaro. A situação é ainda mais complexa dado o reconhecimento da vitória de Maduro pelo PT. Ainda assim, a diplomacia brasileira (e Celso Amorim em particular) fazem um intenso investimento em encontrar uma saída negociada, tentando evitar a escalada da violência e repressão, além da preocupação com o projeto de expansão territorial do governo Maduro na região guianense de Ezequibo.
A crise instaurada é, por um lado, expressão da fragilidade das instituições globais e regionais para enfrentar temas da agenda democrática e de direitos humanos; por outro, é impactada pela ausência destes mecanismos.
As instituições internacionais, em inúmeros casos ao longo das últimas décadas, puderam contribuir em situações em que a legitimidade das instituições domésticas era frágil ou inexistente. O monitoramento eleitoral amplo é um exemplo claro dentre estas contribuições. As normas sobre direitos humanos são um pilar central que podem limitar o uso da violência.
A reconstrução de instituições regionais robustas, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a União Africana (UA), com agendas que têm real impacto sobre a vida social e que permitem a geração de consensos mínimos para a atuação internacional, é hoje claramente necessária.
Dessa forma, a região poderia continuar sua trajetória de ajuda à construção de uma governança global e, ao mesmo tempo, evitar que a América Latina seja engolfada pela disputa sistêmica entre Estados Unidos e seus aliados e China e seus aliados.