A comunicação pública ainda é desconhecida por aqueles a quem mais deveria interessar no Brasil: as pessoas que compõem o imenso percentual de 99,63% da população que assiste a vídeos, dos quais 73% acompanham, em média, cinco horas por dia de TV aberta, segundo pesquisa recente da Inside Vídeo-2024.
Porém, muitos desse grupo acima sequer sabem que gerir radiodifusão pública no Brasil é uma função de Estado, delegada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Nesta afirmativa há alguns pontos fundamentais a serem destacados. Em primeiro lugar, ao se falar em comunicação pública a atenção se volta geralmente e quase que exclusivamente para a TV, quando sabemos que o rádio tem alcance e capilaridade maiores do que a televisão no Brasil.
Em segundo lugar: não se pode minimizar a relevância de uma agência pública de notícias que se insere nos principais temas e debates nacionais e internacionais, principalmente entre os veículos da mídia impressa. Mas isso infelizmente ocorre por aqui.
Por último: diante do avanço das tecnologias digitais, também não se pode resumir a comunicação pública no Brasil apenas ao serviço de radiodifusão gerido pela EBC: a TV Brasil, a TV Brasil Internacional e um sistema de rádio com oito emissoras, uma agência de notícias e presença constante nas mídias digitais.
Tudo isso é muito pouco. E é sempre importante lembrar que o sistema de radiodifusão do Brasil é tripartite, como previsto na Constituição Federal. Composto, de modo complementar, entre o sistema privado, o público e o estatal.
Retrocessos sob Temer
Com 20 anos de atraso desde a promulgação da Constituição de 1988 e quase 60 anos depois da primeira transmissão de TV no Brasil, a parte pública do sistema de radiodifusão entrou no ecossistema comunicativo do país em 2008, durante o segundo governo Lula. Mas oito anos depois, com o início do governo Temer em 2016, começou o desmonte do projeto.
Já em 2008, os jornais da chamada grande imprensa não pouparam adjetivos para desqualificar principalmente a TV Brasil, acusando o governo de empregar dinheiro público em algo que não dava retorno de audiência.
Mas avaliar a relevância da TV pública por essa métrica de objetivo comercial é o mesmo que comparar batatas com lápis de cor.
Na lei de criação da EBC, um dos objetivos da radiodifusão pública é “desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania”. Como fazer isso em formato televisivo e radiofônico, conseguindo ser atraente para um público com o gosto já treinado por uma mídia comercial com profissionais altamente qualificados para desenvolver este mesmo padrão de comunicação?
Entre os princípios da lei, está a busca por “excelência em conteúdos e linguagens, e desenvolver formatos criativos e inovadores”. E para isso, foi elaborado um projeto de cooperação técnica com a Unesco, para criação de um Centro de Pesquisa Aplicada, Desenvolvimento e Inovação em Comunicação Pública. A EBC tem profissionais altamente qualificados, muitos com titulação de mestrado e doutorado, que estavam empenhados e dispostos a desenvolver o Centro de Pesquisa.
Em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, Michel Temer, antes mesmo de assumir oficialmente a Presidência da República, editou uma Medida Provisória que alterou a estrutura da EBC, extinguiu o mandato do diretor presidente e o Conselho Curador, indicando uma nova diretoria para a empresa, cujo primeiro ato foi extinguir o projeto quase pronto do Centro de Pesquisa.
Estar atrelada a governos, sejam eles quais forem, é talvez o principal obstáculo à consolidação do projeto de uma comunicação pública no Brasil, em linha com padrões internacionais.
No atual contexto, onde se avolumam os discursos de ódio, as informações falsas, a manipulação digital dos fatos, os programas televisivos que exploram e difundem a violência, a comunicação pública não será certamente uma panaceia, mas poderá e deverá ser uma nova forma de se relacionar com as audiências, contribuindo para que desenvolvam a percepção crítica sobre conteúdos das diversas mídias.
Não são poucos os desafios para a comunicação pública no Brasil, principalmente em um ecossistema em que poucos conglomerados empresariais detêm a hegemonia do discurso comunicativo público, sem nenhuma regulação.
Chamado à reconstrução
O fato de a EBC ser uma empresa estatal torna difícil a diferenciação entre comunicação pública e comunicação estatal. Isso fica ainda mais complexo se levarmos em consideração o empenho de alguns canais da mídia privada em reforçar essa visão de que os canais públicos estão a serviço de governos – o que é uma meia verdade.
Seria mais pertinente dizer que os governos usam indevidamente a parte pública do sistema como se fosse estatal. E isso ocorreu, de forma muito mais grave, no Governo Bolsonaro, que usou os canais da EBC para propaganda pessoal e de governo.
Esses embates transbordam para outras instâncias da discussão política. Na própria EBC há uma clara divisão entre empregados e empregadas antigos, e os novos e concursados. Do ponto de vista da preferência funcional, os primeiros acham que era mais simples trabalhar para a estatal Radiobras do que para a sua herdeira EBC. Já o segundo grupo em geral luta para que se consolidem os princípios da Comunicação Pública na empresa e em seus conteúdos de exibição.
Como se fossem poucas as dificuldades, há ainda uma disputa protagonizada por jornalistas, servidores da comunicação institucional estatal, considerando que toda comunicação é pública se recebe verbas do estado. Por isso, reivindicam a junção das duas modalidades - pública e estatal - sob o título comum de Comunicação Pública.
Pela proximidade com as instâncias de poder, sem levar em consideração o que está estabelecido na Constituição, a ideia foi encaminhada como projeto de lei (1202/2022) e está em tramitação na Câmara Federal.
O Artigo 1º do PL é abrangente: “Art. 1º. Esta lei estabelece o conceito e as diretrizes da Comunicação Pública e dispõe sobre a organização dos Serviços de Comunicação Pública nos três poderes das esferas federal, estadual, distrital e municipal, nos órgãos autônomos, nas empresas públicas e nas entidade conveniadas, além de disciplinar a gestão e a utilização desses serviços, incluídas emissoras de rádio e TV, portais, aplicações e perfis institucionais em plataformas de Internet, serviços de atendimento ao cidadão, ouvidorias e assessorias nas áreas de comunicação em geral.”
Por outro lado, integrantes da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, grupo da sociedade civil integrado por acadêmicos e acadêmicas, pesquisadores e pesquisadoras, empregadas e empregados da EBC, dirigentes sindicais, membros do Conselho Curador cassado em 2016 e jornalistas tanto do campo estatal como do campo público, em diálogo com a Secretaria de Comunicação do Governo Federal e a EBC, formaram um grupo de trabalho para debater e definir o que se considera o princípio fundamental da comunicação pública, que é a participação social.
Como resultado deste grupo de trabalho, ficou acordado entre os atores do processo que a EBC criará um Sistema Nacional de Participação Social, composto pelo Comitê de Participação Social, Diversidade e Inclusão, pelo Comitê Editorial e de Programação, por uma Assessoria de Participação Social e Diversidade e pela Ouvidoria. A Ouvidoria é a principal porta de entrada da cidadania na empresa pública. No entanto, as relações de poder que atravessam a estrutura hierárquica da EBC nunca assimilaram muito bem a subordinação ao interesse público e à sociedade civil.
Com a proximidade do fim do mandato do atual ouvidor - um militar nomeado pela gestão bolsonarista - a diretoria da EBC apressou-se em anunciar um nome que hoje ocupa um cargo diretamente ligado à presidência da empresa. O ouvidor tem mandato e deverá ter independência no exercício da crítica aos conteúdos e programação, em defesa dos princípios da comunicação pública e das audiências. Mas o poder não suporta críticas. E a comunicação pública brasileira vai seguindo aos tropeços.