Nos últimos tempos, nossas escolas têm sido marcadas — para além dos problemas de aprendizagem dos conteúdos acadêmicos, principalmente depois da pandemia da Covid-19 — por uma onda de violências extremas. São ataques de jovens, alunos e ex-alunos, que escolhem a escola, não um shopping ou supermercado, para matar.
Essa onda de ataques evidencia uma de nossas angústias quando pensamos na educação: o quanto o tema da convivência é também um conteúdo imprescindível a ser trabalhado na escola. Tão importante quanto as matemáticas, as linguagens, as ciências, tratar da convivência ética é, sim, tarefa dessa instituição cuja responsabilidade é formar. É de sua natureza a formação humana.
Um problema complexo, com muitas causas
Em 2011, vivenciamos o que seria a pior tragédia das escolas brasileiras, o ataque em Realengo, no Rio de Janeiro. Logo seguiram-se outros: Remanso (BA); Goiânia (GO); Medianeira (PR). Até que outro ataque supera o que vivemos em Realengo: Suzano, em São Paulo. Depois disso, Monte Mor (SP), Poços de Caldas (MG), Aracruz (ES), São Paulo, todos apontando uma ferida aberta e dolorosa na escola.
Certamente, o que explica tais cenas de violência tem relações diretas com os discursos de ódio proferidos pelos que estão no poder; com a falta de regulamentação das redes sociais, onde se encontram grupos que propagam a violência e articulam os ataques; com famílias negligentes e ausentes; com os transtornos psíquicos.
Entretanto, relacionam-se também com a solidão e exclusão vivida por meninos e meninas, cuja falta de pertencimento é sentida enquanto experimentam a convivência com aqueles que fazem parte da constituição de sua identidade. Quem? Seus pares.
E onde mais se encontram os pares numa uma geração que não tem mais primos, que pouco se encontra nas ruas, ou cujas ruas são trocadas pelas telas com os encontros vazios e rasos entre amigos virtuais, sem identidade, sem apego, sem intimidade, sem pertencimento? Somente na escola. Será na escola a convivência da exclusão ou do pertencimento, da ameaça ou da empatia, da covardia ou da ajuda, da solidão ou do companheirismo.
A escola no centro do debate sobre as violências
Infelizmente, pouco se fez desde Realengo para transformar os espaços escolares e introduzir a discussão sobre essa temática tanto na formação de professores como na organização de políticas públicas. Certamente, o combate a este problema não se faz apenas com a escola, porque ela não é e não pode assumir uma missão salvacionista.
Atuar na escola é uma entre as várias ações necessárias para se mudar esse contexto de violência, e deve se somar a outras, como o acionamento e o funcionamento efetivo da rede de proteção em que a escola está inserida ou a regulação das plataformas digitais. Além disso, questões políticas e ideológicas também acabam por impactar os padrões de comportamento de nossos jovens e suas famílias (como foi o caso das falta de políticas de controle de armas em nosso país nos últimos anos).
Países como Chile, Espanha e Colômbia já perceberam que, para superar e combater as violências escolares, é necessário investimento na formação de professores e ações que possibilitem na escola uma convivência positiva e de bem-estar, para evitar que os problemas venham a acontecer. Esta, certamente, não é tarefa fácil.
Mas será inútil toda e qualquer ação que não implique aqueles e aquelas que convivem na construção de um ambiente de acolhida, de bem-estar. E essa não é uma premissa atual: ao ser convidado para falar na Unesco sobre a reconstrução do mundo no Pós-guerra pela educação, Piaget já tratava da importância da cooperação em seu sentido mais pleno.
Os Sistemas de Apoio Entre Iguais
Uma das ações mais promissoras que conhecemos para transformar as relações na escola, a partir do seu papel de formar pessoas melhores, são os Sistemas de Apoio entre Iguais (SAI). Trata-se de uma estratégia de preparação de alunos e alunas para atuar acolhendo, incentivando, orientando, aconselhando, mediando conflitos, cultivando amizades e promovendo ações de bem-estar entre seus pares.
Tão antigos quanto as pesquisas sobre o bullying, os primeiros trabalhos para a superação desse problema de violência na escola datam da década de 1970 nas Ilhas Britânicas. De lá para cá, em vários países, principalmente na Europa, os SAI foram se tornando uma metodologia eficaz no combate ao bullying e, de forma mais atual, aos problemas de cyberconvivência. Vários são os tipos de redes de apoio, formadas e adaptadas conforme as culturas, localidades e objetivos de quem os implantam.
No Brasil, em 2015, iniciamos o trabalho de implementação de um tipo de SAI, as chamadas Equipes de Ajuda. Esse sistema foi originalmente criado na Espanha, a partir de um antigo modelo de “alunos ajudantes” já existente no país.
As Equipes de Ajuda consistem em grupos de alunos e alunas que são escolhidos (pelos próprios pares, por suas relações de confiança) para ajudar, em seu sentido mais pleno, nas questões de convivência na escola. Não se trata de mediar ou resolver os desafios dos pares, mas de ajudá-los a encontrar as soluções e de fomentar as ações de convivência.
Esses alunos e alunas são preparados para acolher, reconhecer e saber intervir nos diversos problemas cotidianos enfrentados nas escolas, sempre com a supervisão e acompanhamento de um tutor, um professor que é escolhido também em função de sua competência para tanto e formado para essa ação.
As pesquisas sobre os SAIs no Brasil
Implementamos essa proposta em algumas escolas pioneiras no Brasil, adaptando o sistema espanhol aos aspectos das nossas escolas. Esse trabalho é resultado de um esforço contínuo de muitos pesquisadores, que tiveram não apenas que adaptar, mas construir do zero um modelo para o país. Diferentemente da Espanha, o Brasil não possui políticas públicas de convivência já em funcionamento.
Afinal, não há como uma Equipe de Ajuda funcionar em uma escola sem que seus professores entendam que é preciso espaços de diálogo; ou sem que professores e gestores entendam que as sanções a serem dadas aos comportamentos equivocados dos alunos precisam ser por reciprocidade e não com punições. Isso requer um trabalho anterior e concomitante, capaz de transformar a convivência em um valor na escola. Algo que a Espanha já consegue garantir na formação sistemática de seus professores.
Além disso, não tínhamos instrumentos construídos para avaliar o caminho antes de começar a caminhar. Para testar e equacionar todas variáveis que estavam em jogo, fomos buscando avaliar partes para chegar a um todo. Os instrumentos foram sendo construídos com o tempo.
E o que tivemos como respostas desse trabalho?
A primeira pesquisa que fizemos comparou as respostas de adolescentes de uma escola em que implantamos as Equipes de Ajuda dentro de um Programa de Convivência em uma rede Pública do interior de São Paulo. Os participantes responderam um questionário, avaliando os problemas vivenciados ANTES das Equipes de Ajuda e DEPOIS da sua implantação. Os resultados mostraram evidências de que os problemas teriam diminuído com a atuação das equipes.
A segunda pesquisa que fizemos foi com 1.366 alunos de escolas com Equipes de Ajuda e com 1.147 alunos de escolas sem as equipes para comparar se haveria diferenças entre elas quanto ao envolvimento em situações de bullying. Os resultados mostraram que nas escolas sem Equipes de Ajuda havia muito mais alvos, mais autores e mais espectadores das violências.
A terceira pesquisa trazia à tona a qualidade da convivência ética que desejávamos formar. Comparamos mais de 2 mil alunos de escolas com e sem Equipes de Ajuda. Entre aqueles de escolas com Equipes de Ajuda, a adesão a valores como a solidariedade, justiça e respeito era maior do que entre aqueles de escolas sem Equipes de Ajuda.
A quarta pesquisa nos trouxe uma preocupação, mas também um caminho. Queríamos saber das crenças de autoeficácia para ajudar e descobrimos que os membros das equipes estavam, sim, mais preparados para ajudar. Mas, ao analisar as respostas dos alunos que não eram parte das equipes, não havia diferenças significativas entre as escolas com e sem Equipes de Ajuda. Nosso desafio era fazer com que as Equipes de Ajuda fossem um disparador para toda a escola se envolver na acolhida, e não que apenas seus membros estivessem atentos aos problemas de convivência e se sentissem capazes de acolher.
Esses e outros resultados nos trouxeram esperança de que estávamos no caminho certo. Passamos então a uma comparação do nosso modelo com o espanhol, com mais de 10 anos à nossa frente.
Numa primeira pesquisa, comparamos a frequência de intimidação entre grupos de adolescentes em escolas com e sem Equipes de Ajuda, brasileiras e espanholas. Vimos que a frequência das intimidações nas escolas com Equipes de Ajuda no Brasil era menor, em comparação com as escolas sem as equipes. Mas, comparadas às escolas espanholas, mesmo nossas escolas com Equipes de Ajuda apresentam maior frequência de intimidação do que as escolas sem equipes na Espanha.
Em outra pesquisa, perguntamos a estudantes dos dois países questões como quantas amizades têm, como se relacionam, como se sentem na escola, como são tratados pelos professores. Da mesma forma que na investigação anterior, temos um saldo positivo nas escolas com Equipes de Ajuda no Brasil, quando comparadas com as escolas sem equipes, mas sempre inferiores às escolas na Espanha.
Esses resultados mostram a importância de políticas de convivência regulamentadas no país, bem como o efeito positivo dos programas de convivência nas escolas, que não temos no Brasil.
Pares que cuidam
Não há dúvidas de que o tema da convivência é central nas escolas brasileiras. A lei antibullying, de 2015, e a lei 14.811, de 2024, garantem o direito à aprendizagem da convivência na escola. A lei sancionada este ano eleva à condição de atenção o bullying e outras violências extremas que atingem a escola. No entanto, ela trata o bullying e o cyberbullying como crime. E não é da natureza da escola a criminalização. Portanto, não é da sua natureza a ação judicializante, mas a ação de formação.
Conhecer o que mostra a ciência com suas pesquisas é fundamental. E nossas pesquisas mostram o enorme desafio que ainda temos a seguir. Mas seus resultados mostram também que há a possibilidade de superação dos problemas de convivência na escola. E um dos instrumentos para isso pode ser a implementação de um SAI, com o envolvimento dos jovens nos nos problemas da escola.
Principalmente quando as violências são escondidas — como é o caso do bullying, das exclusões, da solidão e dos sofrimentos emocionais entre os adolescentes ou mesmo entre as crianças — há quem veja: os pares sabem do que acontece com seus iguais. E, embora os números sejam preocupantes (foram 121.671 registros de casos de bullying em ata notorial no Brasil só em 2023), há escolas que conseguem reduzir esses números trabalhando com a prevenção: vendo o que não se vê, não com os olhos dos adultos, mas dos pares.