A eleição de 2024 na Venezuela recebeu uma intensa cobertura midiática nas últimas semanas no Brasil no mundo. E esse complexo episódio está demonstrando ser o maior desafio diplomático para o nosso país na atualidade. Especialmente pelo duplo caráter que a política externa possui.
Enquanto política pública, a diplomacia tende a ser diretamente influenciada pela visão do governo do momento e, consequentemente, deve estar sujeita ao escrutínio da opinião pública: pode-se ser contra ou a favor de uma particular decisão do governo atual sobre uma questão diplomática específica. No entanto, a política externa de um governo é também a continuidade de uma política de Estado já estabelecida, isto é, requer certo descolamento das disputas político-ideológicas do momento em prol do interesse nacional em longo prazo.
Essa dualidade, muitas vezes pouco notada em razão da baixa atenção que a política externa recebe entre o eleitorado brasileiro, torna-se premente no caso atual da Venezuela. O vizinho latino-americano ganhou um valor simbólico semelhante ao de Cuba e seu processo revolucionário nos anos 1960. Hoje, a Revolução Bolivariana e o chavismo polarizam o espectro ideológico, inclusive dentro da própria esquerda.
As denúncias de violação aos Direitos Humanos pelo governo de Nicolás Maduro, bem como as questionáveis credenciais democráticas da oposicionista María Corina Machado, geram um custo político para qualquer posição que um país como o Brasil assuma sobre a Venezuela. O peso fica ainda maior por conta do impacto provocado pela recente chegada de milhares de venezuelanos ao Brasil, que são o elemento mais palpável para os brasileiros da crise multidimensional que assola o país vizinho.
A situação brasileira também é delicada pelo contexto de alta tensão política que marcou o retorno de Lula ao Planalto. Para superá-lo, foi necessária uma frente ampla com diferentes setores, sob o lema de fortalecimento da democracia frente à ameaça autocrática de Jair Bolsonaro.
Fogo amigo
Após o nebuloso processo eleitoral venezuelano, figuras representativas do governo Lula, como Marina Silva (ministra do Meio Ambiente) e Randolfe Rodrigues (líder do governo no Congresso) expressaram críticas ao sistema de governo de Nicoláas Maduro. Já o Partido dos Trabalhadores, núcleo ideológico do atual governo, enviou observadores próprios para acompanhar o pleito e soltou uma nota apoiando a reeleição de Maduro.
A cisão intrabloco governamental é importante, mas menos intensa que os distintos clamores no debate público brasileiro, com exigências de rompimento de relações com a Venezuela. Houve também acusações de condescendência do atual governo com uma ditadura e até alegações de subimperialismo por parte do presidente brasileiro. Esse variado e muitas vezes radicalizado cardápio de opiniões é sintomático de como a política venezuelana gera dissensos.
Lula se tornou alvo fácil de críticas pelos gestos iniciais de apoio a Maduro e declarações que relativizavam o conceito de democracia. Assim, tem sido relevante a reivindicação de parte da sociedade civil de que a democracia seja um valor defendido pelo Brasil na esfera internacional, em alusão à preocupação da própria frente ampla que o elegeu. Basta recordar o papel que organizações não governamentais tiveram na denúncia aos ataques bolsonaristas ao sistema eleitoral brasileiro, nas vésperas da eleição de outubro de 2022.
Em busca do respeito à tradição histórica da diplomacia brasileira
Em um cenário bastante truncado no âmbito doméstico, acrescenta-se a dimensão histórica da diplomacia enquanto política de Estado no Brasil, com uma relativa continuidade ao longo do tempo. Os princípios que perpassam os distintos governos brasileiros em sua ação externa foram construídos por Barão do Rio Branco, no início do século XX. Os pilares legados pelo patrono da diplomacia brasileira são o respeito às soberanias, a autodeterminação dos povos, a busca por solução pacífica de controvérsias e a não ingerência em assuntos domésticos.
Uma das exceções a esse padrão foi a política externa de Jair Bolsonaro, que no trato com a Venezuela rompeu com Maduro e reconheceu Juan Guaidó como presidente interino. Essa aposta prejudicou a relação bilateral e trouxe prejuízos econômicos ao país, rompendo com a tradição diplomática de Rio Branco.
Buscando recompor os princípios da chancelaria, o Itamaraty se alinhou ao terceiro governo Lula na concordância com a necessidade de se retomar o protagonismo internacional do país. A relação bilateral com a Venezuela também precisava ser retomada, pela vontade do Brasil em ser visto como liderança capaz de mediar conflitos em escala regional e global. Apesar disso, há sinais de desarmonia entre algumas falas improvisadas do presidente e a postura de maior cautela por parte do corpo diplomático brasileiro.
Mesmo com nuances na abordagem do problema que a Venezuela representa, há um consenso em torno da ideia de que o vizinho é um enorme empecilho aos nossos interesses nacionais. A preocupação reside na escalada da violência em um país com o qual compartilhamos uma fronteira estratégica e no questionamento da capacidade brasileira de ser uma liderança regional e um articulador geopolítico respeitado globalmente.
O imbróglio venezuelano pode ser uma oportunidade única para o Brasil refletir sobre a necessária interlocução da política externa do governo com a sociedade civil. É preciso repensar o interesse nacional, equilibrando demandas democráticas com os princípios que trazem coerência e estabilidade à nossa ação internacional. Não há solução fácil. Mas a realidade precisa ser enfrentada de forma racional para que esse desafio concreto amadureça o debate da política externa como política tanto pública quanto de Estado no Brasil.