Menu Close
Estudante sueco em sala de aula com headfone no ouvido e livro na mão: preocupado com o uso desenfreado de ferramentas digitais no universo escolar, um dos melhores sistemas de ensino do mundo está estimulando a volta dos livros e da leitura às escolas. AP Photo/David Keyton

Tecnologias de Inovação e Comunicação não são irrefreáveis, nem precisam se antagonizar com livros

Partimos de um acontecimento recente ocorrido no sistema de ensino fundamental sueco. Depois de décadas apostando em uma política pública educacional pautada no uso de ferramentas digitais e virtuais - que alavancou o país como referência mundial no setor -, agora o governo da Suécia se esforça para convencer a atual geração escolar a retomar seus estudos também por meio da leitura de livros didáticos. Aqueles de papel mesmo. E que sempre foram, vale lembrar, tecnologias eficientes, universais e longevas de educação. Livros são uma tecnologia impressa, portáteis, recicláveis, suportes de memórias. São um aparato de leitura reversível, atores de grandes revoluções do conhecimento.

Trocando em miúdos: o governo sueco percebeu que as vantagens intelectuais e cognitivas auferidas com o uso dos bons e velhos livros são essencialmente diferentes daquelas conquistadas por tablets e smartphones, e não podem ser abandonadas.

Na realidade, ambas as tecnologias - a milenar e a recém descoberta - são formas distintas e eficientes de educar os sentidos e as sensibilidades. Mas não são necessariamente conflitantes. As chamadas Tecnologias de Inovação e Comunicação (TICs) não podem ser consideradas irrefreáveis, nem precisam se antagonizar com antigas técnicas, como o uso de livros e lousas. Elas podem e devem coexistir, para oferecer um quadro educacional mais rico, interessante e universal.

Pelo exemplo sueco, podemos analisar historicamente essa questão sob dois pontos de vista distintos e complementares: o sociopolítico e o temporal.

O aspecto sociopolítico

A condição sociopolítica de aceitação irrestrita das TICs nos processos educacionais, principalmente escolarizados, necessita uma crítica. As TICs são compostas por conjuntos de recursos integrados por hardware (computadores, tablets, smartfones etc.), software (aplicativos, plataformas de ensino, plataformas de gestão de atividades, redes sociais, videoaulas etc.) e elementos infraestruturais de telecomunicação, como redes e automação de processos tecnoburocratas. Todos estes elementos têm sido apresentados como inevitáveis na escolarização, merecedores de amplos investimentos.

Porém, tais produtos unificados não funcionam nem se justificam quando se percebe que eles estão emaranhados numa rede sociotécnica que, na prática, aliena os grupos legitimamente interessados nos benefícios educacionais proporcionados pelas novas tecnologias.

Este conjunto de dispositivos excludentes se manifesta, por exemplo, na ação de empresas de materiais didáticos, de grandes corporações big-tech e também de manipulações políticas. Todos à sua maneira interessados nos dividendos proporcionados pelos novos investimentos neste setor. Tais dividendos incluem desde os lucros auferidos com a propriedade de ações no mercado financeiro até a participação em grandes planos de gestão pública relacionados à educação. Que muitas vezes são bem aceitos pela sociedade civil por conta da relevância do tema, apesar do envolvimento de governos em processos que na verdade são privados ou pouco conectados com o interesse público.

Portanto, não há ingenuidade na ampla divulgação hoje existente das benesses promovidas pelas TICs na formação de estudantes. Que acabam sendo conduzidos pelos investidores deste novo mercado a tornarem-se prioritariamente um vasto mercado consumidor – fomentando a ideia de que os livros e a leitura devem ficar esquecidos na prateleira.

O aspecto temporal

Sobre a condição temporal, vemos a introdução de inovações na sociedade envolta em complexidades culturais nem sempre discutidas. Naturalizamos a ideia de que o “novo” é benéfico e intrinsecamente bem-intencionado.

É interessante perceber a ideia de benefício social imediato que a novidade carrega, coincidindo com um processo histórico nascido na sociedade tecnocientífica do século XIX, e que passa a apresentar produtos industriais como invenções glorificadoras de seus inventores (na verdade os proprietários de suas patentes), sempre anunciando o futuro sob a égide do progresso.

Historicamente na sociedade ocidental, o confronto entre o “novo” e o “velho” transforma a temporalidade em algo linear, ignorando clivagens geracionais e a condição política das discussões sobre a novidade tecnológica do momento.

A inovação é um encontro entre diferentes gerações que, na cultura, travam uma batalha política sobre suas vantagens e desvantagens. A permanência da tradição e a alteração das práticas sociais exigem observação atenta sobre todas as “versões seletivas” dos significados de tecnologia operados e reproduzidos nesta disputa.

A história das inovações é a história das relações sociais no embate pela criatividade. Alguns têm o poder de capitalizá-la e reproduzi-la, julgando fazer “o bem”. Outros aparecem como retrógrados, quando criticam a novidade que imediatamente lança ao limbo práticas, ações, gestos, criações e sentimentos, outrora também inovadores, que no presente deixam de ser valorizados.

Exatamente por isso, a escola pode e deve ser um espaço histórico que funciona como celeiro de ideias e de soluções tecnológicas, tanto antigas quanto novas.

Logo, as TICs não são necessariamente o mais eficiente empreendimento inovador escolar. Não são sinônimo de únicas saídas disponíveis para melhorar a eficiência educacional das escolas brasileiras. Muito embora haja hoje um grande esforço para convencer ideologicamente as pessoas sobre isso.

Reformas educacionais são batalhas tecnológicas

Pela Teoria das Redes Sociotécnicas (TST), há uma inter relação entre as redes sociais e as infraestruturas tecnológicas, pois são dimensões interligadas e interdependentes produzindo relações sociais que moldam e são moldadas pelas atividades humanas entremeadas por suas tecnologias.

Deste modo, o tema “inovações tecnológicas” ganha um caráter histórico, coletivo, contextual, político.

A escola é uma instituição integrada aos processos de propagação de percepções sobre o que é uma inovação tecnológica. E, por isso, a escola não é um espaço de mero recebimento passivo de novos produtos supostamente inovadores. Qualquer escola tem o poder de negociação sobre o que entende como benéfico ao seu funcionamento. Às vezes pode assumir a novidade. Outras, pode e deve desprezá-la, precisamente porque a escola tem papel ativo nas redes sociotécnicas.

Assim, por essa perspectiva não existe uma definição fixa sobre o que seja a melhor tecnologia inovadora na educação. Esta ideia é fruto das interações contextuais e mutáveis entre humanos e seus inventos, podendo gerar interdependência recíproca ou não. A tecnologia é um componente social, cultural e técnico na dependência dos contextos e das relações dos atores envolvidos.

Desta forma, os sujeitos mais conservadores são denominados de “arcaicos”, pois estão em luta, negociando significados e, não raro, questionando a seletividade de escolhas técnicas. Se existe uma dinâmica social entre diferentes tecnologias, compreende-se que a comunidade escolar (professores, alunos, administradores) confabulam entre engajamentos e resistências, gerando significados sobre o que deva ser inovação tecnológica educacional. Vale considerar que toda reforma pedagógica apresenta essa luta tecnológica, pois no espaço escolar as camadas de tempo e a validade de antigas tecnologias estão sempre visíveis.

A tecnologia dos livros

Os livros didáticos são tecnologias referendadas há mais de três séculos como componentes de conhecimento e repositórios legítimos de cultura. A lousa, que é o quadro de anotações que os professores usam abertamente em sala de aula, permitiu o ensino socializado, coletivo e sincrônico de massas. A lousa por si só é um aparato tecnológico facilitador da percepção coletiva da ética republicana, por exemplo.

Parece contraditório, mas sua insistente permanência até hoje reforça o seu sucesso como tecnologia escolar. Muito embora se reconheça a força das TICs como novos aparatos sociotécnicos, atuando na formação de grandes contingentes de alunos, vale lembrar que universidades universalmente consagradas como Oxford ou Harvard seguem oferecendo Aulas Magnas na formação de suas elites.

Este texto não pretende ser reacionário diante das TICs. Pretende, apenas, provocar uma reflexão sobre suas supostas “inevitabilidades”. O vigor dessa ideia não pode, por exemplo, desconsiderar a importância de bibliotecas físicas só porque todo o o conhecimento da humanidade pode ser acessado em dispositivos digitas.

Ao compreender as tecnologias educacionais de maneira histórica, vemos uma realidade mais complexa. O êxito de certas inovações, e não de outras, está relacionado às possibilidades de um pacto feito na ordem social. A possibilidade de rompimento de uma nova tecnologia com a tradicional depende da forma como a permanência da primeira é reproduzida, e de como se dá a aceitação social dos novos aparatos propostos pela segunda.

Pensar a tecnologia de maneira histórica permite perguntar, por exemplo: por que um professor deveria aceitar toda essa parafernália tecnológica nascida com obsolescência programada, com vestes de consumo puro, como nova ferramenta de ensino?

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 191,300 academics and researchers from 5,063 institutions.

Register now