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Análise: Projeto de lei que propõe classificar jogos de fantasia como videogames abre brechas preocupantes

Sessão do Congresso que discutiu o marco legal para a indústria de jogos eletrônicos e jogos de fantasia: diante da divergência entre os especialistas, senadores defenderam o adiamento da votação da matéria. Agência Senado, CC BY-SA

Afinal, o que é um jogo eletrônico? E quais os riscos associados ao vício em jogos? É possível colocar na mesma categoria os videogames e os jogos de azar?

Essas questões não são apenas filosóficas ou conceituais. Afinal, produzir e consumir jogos são atividades que geram empregos, investimentos, propiciam o surgimento de novas empresas e a arrecadação de impostos. É nessa dimensão econômica da esfera lúdica que os conflitos ganham intensidade, principalmente no Brasil, onde faltam políticas públicas e mesmo um marco regulatório que reduza a insegurança jurídica de quem pretende criar uma empresa de games ou investir num projeto voltado para o entretenimento digital.

Em 2022, num momento político delicado, em que se disputava uma acirrada eleição presidencial, o deputado federal Kim Kataguiri (na época filiado ao DEM, hoje no União Brasil/SP) conseguiu passar, a toque de caixa, um projeto de lei para definir o “marco legal dos jogos eletrônicos e dos jogos de fantasia”, o PL 2.796/2021. Mas como juntar, nesse mesmo fundamento legal, as duas realidades?

Esteban Clúa, professor da Universidade Federal Fluminense que há 30 anos faz pesquisa, ensino e projetos na área de videogames, um especialista reconhecido que participou da criação da SBGames, a principal associação acadêmica voltada à pesquisa sobre videogames no Brasil, declarou que nunca em sua carreira tinha sequer ouvido falar em “jogos de fantasia”.

A Associação Brasileira da Indústria de Games, a ABRAGAMES, também saiu a campo nos últimos meses para alertar contra essa nova categoria. No mês passado, o projeto aprovado na Câmara dos Deputados foi discutido numa sessão de debates temáticos no Senado Federal. Foi na quarta-feira, 20 de setembro – e a votação do tema em plenário, em regime de urgência, deveria ocorrer no dia seguinte.

Após ampla mobilização (e para fins de transparência, registro que participei da sessão no Senado a convite da ABRAGAMES), a urgência foi descartada. Após 4 horas de discussões entre especialistas em games e defensores dos “jogos de fantasia”, o consenso é de que se tratam de atividades com propósitos, métodos e impactos sociais e econômicos bem distintos.

Círculo vicioso e viciante da tecnologia digital

O que são os jogos de fantasia ou “esportes de fantasia”? Um exemplo é a empresa “Rei do Pitaco”, que captou cerca de US$ 30 milhões para promover sua plataforma de fantasia esportiva. Outro, ainda mais famoso, é o Cartola F.C., desenvolvido pela Globo.com e vendido com destaque na programação esportiva da TV Globo e nos canais esportivos da rede.

O projeto de lei que quase foi aprovado no último mês define os “fantasy games” como disputas em ambiente virtual a partir do desempenho de atletas reais. Os participantes dessa modalidade “escalam” equipes imaginárias, formadas por personagens que simulam o desempenho estatístico dos atletas reais de um esporte profissional, como futebol, vôlei ou basquete.

Nos fantasy games de futebol, como o Cartola FC, da Globo.com, as performances reais de jogadores do Brasileirão influenciam a perfomance do usuário no game, podem determinar premiações em dinheiro mas para isso requerem pagamentos, num ecossistema de arrecadação permanente muito semelhante ao dos cassinos online tradicionais. Reprodução de TV

O texto da Câmara dos Deputados inclui os jogos eletrônicos nas mesmas regras de tributação dos equipamentos de informática. Com isso, investimentos em desenvolvimento ou produção de jogos passam a ser considerados como aplicação em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI). A Lei de Informática (Lei 8.248, de 1991) concede crédito financeiro sobre os gastos em PDI para dedução de tributos federais.

Durante a sessão de debates temáticos, uma parte dos debatedores defendeu a inclusão dos “fantasy games” no PL 2.796/2021. Para o outro segmento de especialistas, a medida poderia abrir uma brecha no projeto de lei para uma tributação mais branda dos jogos de azar.

Afinal, quem joga um game no celular, no computador ou num console não está jogando por dinheiro. Claro que há comércio de itens em muitos videogames, que mudam as competências de cada personagem para lutar, abrir caminhos no jogo ou simplesmente para se enfeitar com roupas e outros apetrechos. Há, portanto, comércio eletrônico dentro de muitos games. E há também as “Loot boxes”, caixinhas com itens surpresa que podem acelerar ou melhorar o desempenho de um personagem.

Muitas famílias já sofreram desfalques financeiros ao descobrir depois de algum tempo que uma criança ou adolescente estava viciado num game e andava usando o cartão de crédito para bancar sua performance no jogo.

No caso dos “fantasy games” ou “fantasy sports”, podem-se formar equipes (de futebol, vôlei e outros esportes) a partir da escalação de times com base em jogadores do mundo real. A depender da performance de cada jogador, ao final de uma rodada de um campeonato de futebol, por exemplo, cada “técnico” desses times virtuais terá uma pontuação e poderá então ser premiado em dinheiro.

Tela de fantasy game na internet: a escalação do time fictício obedece critérios de premiação similares a escolha de números num sorteio, sendo que, em vez do puro acaso, é a perfomance dos jogadores no mundo real que determina as premiações.

A mecânica da monetização de cada tipo de jogo, portanto, é bem diferente. Um videogame tem começo, meio e fim. Pode-se até gastar dinheiro com o game, jogar em equipes, viver personagens fictícios como se fossem uma segunda personalidade e assim integrar um “reino imaginário” (por exemplo, vivendo a fantasia em feiras, convenções e outros eventos que reforçam esse pertencimento imaginário). Mas um game é feito para ser terminado.

Já uma plataforma que estimula a criação de times de fantasia, inspirados em jogadores e campeonatos do mundo real pode, em princípio, nunca ter fim. A busca pelo time perfeito pode prosseguir por um tempo indeterminado. Assim como o pagamento de inscrições nesse “esporte de fantasia”.

Surge assim um ecossistema acoplado aos circuitos do futebol real, por exemplo, em que o jogo digital nunca termina. Portanto, além de distribuir prêmios em dinheiro (o que não é a realidade dos videogames), essa “roda da fortuna” que gira por tempo indeterminado parece mais um cassino ou jogo de azar que um jogo digital.

As empresas interessadas em cada modalidade de jogo são bastante diferentes. Um estúdio que cria um videogame jamais dependerá apenas de um jogo. É preciso não apenas produzir novas etapas ou versões de aventuras num reino imaginário (como nas séries de TV, com suas temporadas, muitos jogos são franquias temáticas que evoluem ao longo de anos) mas, em geral, é preciso criar novos jogos. Ou seja, o ciclo criativo na produção de games é essencial para a sobrevivência e desenvolvimento das empresas.

Já nos jogos de “fantasia esportiva”, uma vez definido o algoritmo, é só rodar o software e arrecadar o dinheiro das inscrições, oferecendo uma parcela ínfima da coleta, a título de prêmios, aos jogadores mais, digamos, habilidosos. Não haverá o Rei do Pitaco 1, 2, 3… Não serão inventados novos campeonatos de futebol. É um ecossistema comercial bem distinto da indústria de videogames, um negócio infinito que pode ampliar muito as receitas de quem já opera em mercados esportivos (por exemplo, os próprios times, federações, monopólios de transmissão de jogos pela TV ou por streaming) sem que haja de fato inovação, criação de conteúdos ou mesmo inovação tecnológica. Os critérios de distribuição dos prêmios, evidentemente, ficam a critério da “banca”.

A batalha apenas começou e seguirá no Senado. A sessão de debates temáticos, no entanto, tornou muito mais claras as diferenças entre videogames e esportes de fantasia. E forçou o encaminhamento do projeto a outras comissões, como a de Educação e Cultura.

Não basta dizer que games e fantasias esportivas são ambos produtos e serviços desenvolvidos com tecnologia digital. Não é a tecnologia que define a natureza do objeto, mas seu modelo de negócios e mecânicas capazes de criar dependências e armadilhas financeiras que, em muitos casos, criam uma “ludopatia”, ou seja, problemas de saúde mental derivados da dependência comportamental de jogos (mal que pode afetar tanto os “gamers” tradicionais quanto os “técnicos” dos times criados virtualmente nos “fantasy games”).

É preciso entender o processo produtivo e o modelo criativo, assim como os tipos de riscos de cada tipo de entretenimento. Especialmente para crianças e adolescentes, os riscos associados a uma máquina infinita que promete premiar os melhores “técnicos” virtuais ainda parecem bem maiores que os perigos de jogar um videogame com começo, meio e, principalmente, fim.

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