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As implicações éticas, tecnológicas e de saúde pública da edição genética devem ser debatidas mais amplamente. Esse é o conceito por trás da Assembleia Geral sobre Genética proposta por cientistas australianos. AP Photo/Wong Maye

Assembleia Global sobre Genética: cientistas propõem fórum aberto para debater os dilemas éticos da edição de DNA

Seja para curar doenças como a fibrose cística e a anemia falciforme; criar vacas que não adoecem de tuberculose bovina; modificar mosquitos para que não transmitam a dengue; desenvolver tomates que sejam resistentes a fungos ou um tipo de arroz capaz de crescer em terrenos com alta salinidade, a edição genética de organismos vem prometendo grandes mudanças na saúde, na economia, no meio ambiente.

Mas ela também traz desafios políticos, riscos e dilemas éticos. Embora no Brasil ainda não esteja frequentemente nas capas dos jornais ou nas discussões em redes sociais, a edição genética é uma das novas tecnologias com enorme potencial de impactar a vida de milhões de pessoas em um futuro muito próximo. Tema de ponta nas ciências da vida e com avanços muito significativos nos últimos 15 anos, sobretudo depois da descoberta, em 2012, das técnicas CRISPR, a edição genética amplia o campo de aplicação daquilo que um dia foi chamado de engenharia genética, com uma drástica redução dos custos e um incremento na precisão.

Quem deve decidir?

Como já aconteceu com os organismos geneticamente modificados por transgenia - ou outras inovações tecnológicas recentes, como a nanotecnologia e a Inteligência Artificial -, os benefícios, riscos e potencial da edição genética convocam a sociedade a pensar os dilemas éticos e as regulações políticas necessárias. Mas quem deve decidir sobre temas tão complexos? Os políticos? Os cientistas? A sociedade civil?

Embora alguns cientistas e intelectuais afirmem que problemas de ciência e tecnologia não estejam ao alcance da população em geral, e que sua regulação deva ser deixada com os especialistas, diversos estudos nos últimos trinta anos mostraram algo surpreendente: em alguns momentos importantes, escutar setores da sociedade em temas científicos complexos como terapias para AIDS, radioatividade, tecnologia da informação, levou a decisões melhores. A ideia de que os cidadãos não podem contribuir em decisões delicadas sobre os rumos da CT&I, porque a ignorância do assunto levaria a posições irracionais ou sugestões irrelevantes, foi refutada em muitos casos concretos.

Movimentos de pacientes ou de defesa do meio ambiente, profissionais de diversas áreas e, em geral, pessoas consideradas “leigas”, podem contribuir, se bem informadas, interessadas e mobilizadas, com as políticas de ciência e tecnologia. Em primeiro lugar, porque ampliam o cardápio das decisões e dos caminhos possíveis, colocando demandas e perspectivas locais, questões éticas, considerações econômicas específicas, que nem sempre estão presentes no radar dos cientistas ou dos especialistas em análise de riscos. Em segundo lugar porque, por incrível que pareça, experiências e conhecimento de tipo não científico podem ser importantes para decidir sobre ciência e tecnologia, e até para o próprio avanço da pesquisa e da inovação.

Por isso, diversas instituições têm proposto um debate político mais amplo sobre o futuro e as implicações da edição genética, que envolva, além de pesquisadores da área, cientistas sociais, empresas e cidadãos e cidadãs, visto que compartilham os eventuais ônus e bônus do avanço das técnicas de edição genética. Agências como o National Research Council e a National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine from the Presidential Commission for the Study of Bioethical Issues dos Estados Unidos têm defendido, por exemplo, que qualquer aplicação de edição genética fora de laboratórios deveria envolver discussão pública ampliada com a sociedade.

Assembleia Global sobre Genética

É nesse sentido que um grupo de pesquisadores australianos, no Centre for Deliberative Democracy and Global Governance da University of Canberra, e uma produtora de documentários científicos, a GenePool Productions, buscaram arregimentar cientistas de diversas áreas e continentes para organizar uma Assembleia Global sobre Genética.

Assembleias Cidadãs são uma inovação democrática que têm ganhado projeção pelo mundo. Canadenses utilizaram o formato para buscar reformar o sistema eleitoral e irlandeses o mobilizaram ao longo de anos para promover diversas mudanças no país, incluindo a descriminalização do aborto. Desde então, há um crescente interesse pelo significado, desenho e possibilidades políticas dessas experiências.

Mas como funciona uma assembleia de cidadãos? No caso da Assembleia Global sobre Edição Genética, a ideia é a realização de um grande evento presencial transnacional que suceda vários encontros nacionais. Cada um desses fóruns nacionais enfoca uma dimensão das aplicações da técnica (em humanos, outros animais ou plantas), abordando alguns dos dilemas que atravessam a pesquisa e o emprego da edição genética, com vistas a pensar formas para uma regulação nacional e global.

Assembleia Cidadã Brasileira sobre Edição Genética

No Brasil, coube à UFMG, em parceria com pesquisadores da UNESP, da UEM e da UFG, contando com a colaboração da empresa GhZ, da Agência de Iniciativas Cidadãs e de profissionais da divulgação científica e da comunicação, promover uma assembleia com 26 pessoas que discutiram dilemas e possibilidades da aplicação de técnicas de Edição Genética na área agrícola.

Foi feita uma ampla chamada por potenciais interessados, a partir dos quais construímos um grupo plural em termos de raça, gênero, região do país, escolaridade e religião. Os cidadãos participantes se dividiram em grupos de Whatsapp, com cinco participantes em cada. Nas duas semanas que precederam os encontros da assembleia, que foram online e ao vivo, tais grupos receberam vídeos de animação, podcasts e cards informativos, produzidos por nós e os comunicadores parceiros, sendo moderados por um membro da equipe do projeto que incentivava a discussão e a expressão de dúvidas.

Na sequência, tivemos dois finais de semana de encontros online ao vivo: em 24 e 25 de junho e em 1º. e 2 de julho de 2023. Em cada dia, os participantes puderam discutir entre si e com especialistas convidados aspectos políticos, econômicos, ambientais e morais vinculados à adoção da edição genética em plantas. Os especialistas convidados eram pessoas qualificadas e vinculadas ao tema, além de terem visões distintas sobre a tecnologia e os desafios colocados por ela. Mais do que palestras expositivas, os especialistas foram convidados a interagir com os participantes que puderam colocar algumas questões e dialogar em torno delas.

No último dia, os participantes foram convidados a construir um conjunto de sugestões para a regulação de aplicações da edição genética em plantas e, ao final, apresentaram suas propostas a um jornalista da área de ciência e a um conjunto de cientistas, que representavam três instituições: a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas.

Como já aconteceu em outros processos de participação pública em C&T, as discussões levaram a propostas e questões que nós, pesquisadores, não havíamos antecipado. Entre as propostas elaboradas pelos participantes, destacam-se demandas: pela regulação não apenas dos riscos da edição genética, mas também de seus benefícios; por mais transparência, tanto dos produtos como da regulação da tecnologia; por mais informações para o público e mais participação; bem como por responsabilização sobre pesquisas e aplicações da tecnologia.

Os participantes também sugeriram a criação de um fundo alimentado por lucros derivados da edição genética, direcionado a estimular usos abertos e não lucrativos da tecnologia, voltados ao interesse público. Foi clara uma demanda para que haja regulação efetiva sobre o CRISPR, devendo haver um processo de atualização e revisão da Lei de Biossegurança, formulada muito antes dos avanços recentes dessas tecnologias.

Quais os próximos passos da Assembleia? Em primeiro lugar, diálogo e articulação com autoridades. Foram feitos contatos e reuniões com parlamentares vinculados a comissões de ciência e tecnologia, bem como com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Tais reuniões, que contam com a participação não só de pesquisadores, mas também de cidadãos participantes da assembleia, sugerem a realização de audiências públicas sobre o tema e buscam sensibilizar autoridades para a necessidade de um debate público mais amplo em torno da edição genética.

No aniversário de 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma Assembleia de cidadãos sobre ciência e tecnologia pode nos dar um exemplo de como avançar rumo ao cumprimento do artigo 27: o direito à ciência, que não é apenas o direito de conhecer, mas de “participar do progresso científico”. Einstein afirmava que, só ao cumprir com essa missão da participação pública, a ciência adquiria o direito de existir. E, mesmo num país como o Brasil, marcado por uma desigualdade dramática no acesso ao conhecimento, cidadãs e cidadãos podem, e devem, fazer parte e ter um papel na discussão e na tomada de decisão.

Além dos autores desse artigo, participam do projeto os professores Carla Almeida (Ciências Sociais e Políticas Públicas / UEM), Carla Martelli (Ciência Política / UNESP), Claudia Feres Faria (Ciência Política / UFMG) e Fernando de Barros Filgueiras (Ciência Política / UFG); o pós-doutorando Filipe Mendes Motta (Ciência Política / UFMG), os doutorandos Lucas Veloso e Renato Duarte Caetano (Ciência Política / UFMG); a mestranda Cláudia Torres Lopes (Ciência Política / UFMG); os bolsistas de iniciação científica Mateus Ferrari Canela e Victória Cecília Ruiz Lima (Ciência Política / UFMG); o graduando Victor Menegassi (Ciências Sociais / UEM) e o divulgador científico Lucas Andrade.

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