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A febre Oropouche provoca sintomas semelhantes aos da dengue. Sua propagação ocorre pela picada de outro tipo de mosquito, restrito à Amazônia. Mas as mudanças climáticas podem estar mudando esse cenário. Reprodução, CC BY

Casos de febre Oropouche aumentam muito na Amazônia e possível interação com Aedes aegypti preocupa especialistas

Oropouche? Mas o que é isso? Diferentemente do vírus da dengue e do SARS-CoV2, é possível que muitos de nós jamais tenhamos ouvido falar deste vírus. E não é por menos, pois trata-se de um vírus que circula apenas na região amazônica, causando surtos esporádicos e de pequena magnitude nas populações humanas daquela região, com pouco impacto para a saúde pública nacional.

Mas então por que este vírus começa a aparecer como notícia nos jornais brasileiros e mesmo no exterior? Antes de entender o que é a febre Oropouche, vamos primeiro conhecer o contexto que levou o vírus a este arroubo de fama.

Antropoceno

Muitos de nós já ouviram a palavra “antropoceno”. Em princípio, antropoceno é um termo cunhado pelo químico holandês Paul Crutzen, vencedor do Prêmio Nobel de química em 1995, para definir uma era geológica onde a atividade humana gerou e vem gerando impactos irreversíveis nos ciclos biofísicos da Terra. Estas mudanças são caracterizadas por alterações permanentes nos ciclos climáticos do planeta, assim como modificações nos padrões de fixação de diversos elementos químicos na crosta terrestre.

O termo ainda não é consensual entre especialistas, assim como não há concordância definitiva sobre quando esta nova era teria se iniciado. Independentemente das discordâncias, alguns fenômenos são particularmente relevantes para revelar a extensão do impacto humano nos ciclos naturais do planeta. Entre estes fenômenos, destaca-se a perda acentuada da cobertura vegetal original em praticamente todos os continentes.

Neste ponto, remeto-me a um assunto intrinsicamente reconhecido por todos nós: as epidemias e pandemias causadas por vírus. De fato, a pandemia de COVID-19 ainda reverbera em nossa memória; e para nós, brasileiros, mal saímos do período pandêmico e já nos deparamos com uma assustadora epidemia de dengue.

Mas o que a destruição das florestas tem a ver com estes eventos? Tudo. A despeito das dúvidas que ainda pairam, por exemplo, sobre a origem do SARS-CoV2 - o vírus causador da COVID-19 - não há dúvidas de que ele tem origem zoonótica, ou seja, foi transmitido de um animal (provavelmente um morcego) para o homem através do contato humano com o ambiente natural de forma predatória. E a dengue? Esta epidemia nascente pode ter suas raízes no aquecimento global, que abre novas fronteiras para o mosquito Aedes aegypti conquistar, levando com ele, de carona, o vírus da dengue.

O aquecimento global, assim como as drásticas alterações nos regimes mundiais de chuva, tem origem também na perda das florestas, que assim, reduzidas, tornam-se incapazes de absorver o enorme volume de gás carbônico atmosférico gerado por nós, culminando no famigerado efeito estufa.

Mas no meio destes efeitos gigantescos, há também situações mais discretas, furtivas, que começam a tomar forma, como uma tempestade se avolumando ao longe, e que pode cair sobre nós num futuro não muito distante. E aqui chegamos no foco deste artigo: o vírus Oropouche.

Oropouche

Trata-se de um membro de uma família viral não tão conhecida para nós: os peribunyavírus. Essa família inclui também outros vírus amazônicos de nomes igualmente diferentes, como os vírus Caraparu, Marituba, Murutucu, entre outros. Parentes mais distantes dentro deste grupo, porém mais conhecidos, são os hantavírus, que causam doenças pulmonares e cardíacas graves em seres humanos, mas que felizmente constituem infecções raras.

Todos estes são vírus que apresentam genoma composto por RNA, assim como o vírus da dengue, zika, febre amarela e chikungunya. Mas as semelhanças terminam por aí. Diferentemente destes outros arbovírus que circulam no Brasil, o vírus Oropouche, assim como os outros membros da família Peribunyaviridae, possuem genoma formado por três segmentos de RNA, como se fossem três cromossomos independentes, que codificam diferentes proteínas. Nesse aspecto, se assemelham aos vírus Influenza, que também possuem segmentos de RNA independentes como genoma (no caso do vírus influenza, são oito “cromossomos”). Esta informação será importante para entendermos, mais à frente, porque este vírus preocupa os especialistas.

O vírus Oropouche também é um arbovírus, assim como os vírus dengue, zika e Chikungunya. A palavra “arbovírus” é um acrônimo que deriva do termo em inglês ARthropod BOrne VIRUS, e quer dizer vírus transmitidos por artrópodes. No entanto, diferentemente dos arbovírus mencionados, o Oropouche não é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, mas principalmente por um mosquito comum na região norte do país, chamado de maruim ou mosquito-pólvora (Culicoides paraenses).

Em termos clínicos, a doença causada pela infecção com o vírus Oropouche é normalmente branda, incluindo sintomas genéricos como febre, mal-estar, fraqueza, dor muscular e nas articulações, vômitos e diarreia. Um grande problema é que o quadro é clinicamente indistinguível de outras infecções causadas por vírus mais comuns transmitidos por mosquitos e, para complicar ainda mais, não há testes comerciais disponíveis para diagnóstico da febre Oropouche. Apenas métodos moleculares, de identificação do RNA viral, estão disponíveis, e em poucos laboratórios (principalmente públicos).

Antropoceno + Oropouche

Mas voltemos à questão do desmatamento e seu vínculo com as epidemias, agora incluindo o vírus Oropouche nesta complexa equação. O primeiro sinal de que a dinâmica viral está se alterando veio do aumento explosivo do número de casos de febre Oropouche na região amazônica. De acordo com dados divulgados pela Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), em todo ano de 2023 foram diagnosticados 995 casos de infecção pelo vírus Oropouche. No entanto, apenas nos dois primeiros meses de 2024, foram contabilizados 1.674 casos confirmados laboratorialmente, e este número irá crescer ainda mais ao longo do ano.

Epidemiologicamente falando, este aumento no número de casos denota a clara existência de um fenômeno de desequilíbrio ecológico em comparação aos últimos anos. Isso porque o vírus circula principalmente nas florestas, onde infecta mamíferos de pequeno e médio porte. Assim, o aumento do número de casos pode ser explicado por três possibilidades: a penetração acentuada do mosquito vetor (Culicoides paraenses) nos ambientes urbanos; a invasão aumentada de ambientes silvestres por seres humanos; ou as duas possibilidades anteriores ao mesmo tempo. Do ponto de vista prático, qualquer que seja a explicação para o aumento de casos da febre Oropouche na região norte do país, o fenômeno é preocupante.

Não obstante, se não nos atentarmos, o aumento de casos da infecção pelo vírus Oropouche no norte do Brasil pode ser apenas o primeiro de uma série de eventos em cascata. O aumento do desmatamento e o aquecimento climático ao sul da Amazônia pode favorecer a ampliação da distribuição geográfica dos mosquitos culicóides, levando com eles os vírus que os infectam.

Adicionalmente, o aumento da circulação urbana do vírus Oropouche, como indicado pelo aumento do número de casos confirmados nos centros urbanos da região amazônica e agora pela confirmação de casos importados em outras regiões do país, pode colocar o vírus em contato com outros mosquitos de potencial vetorial muito mais elevado que o maruím, como o próprio Aedes aegypti.

Hoje sabemos que o vírus Oropouche consegue se multiplicar no A. aegypti quando inoculado experimentalmente no inseto. No entanto, o vírus não consegue transpor barreiras teciduais e invadir a glândula salivar do mosquito. Assim, ele não consegue ser transmitido pela picada do A. aegypti, e é através da invasão da glândula salivar do vetor que outros vírus como dengue, zika e Chikungunya, por exemplo, conseguem infectar seres humanos durante o repasto sanguíneo.

No entanto, vírus são seres extremamente adaptáveis, principalmente em razão da elevada ocorrência de mutações genômicas e seleção de mutantes que apresentam vantagens competitivas. A quantidade de mutações potenciais em vírus cujo genoma é constituído de RNA é ainda mais alta. E, no caso dos peribunyavírus, ainda há a ocorrência de um fenômeno chamado rearranjo genético (antigenic Shift), que acontece quando mais de um vírus infecta uma mesma célula e estes vírus possuem genomas segmentados, como é o caso do vírus Oropouche.

Durante a sua multiplicação, os vírus trocam “cromossomos”, formando progênies que apresentam uma mistura dos RNAs dos vírus progenitores. Esse fenômeno aumenta ainda mais o potencial mutante destes vírus, e também acontece com outros vírus que apresentam genomas segmentados, como é caso do vírus Influenza, sendo responsável pelo surgimento de variantes virais com enorme potencial pandêmico.

Portanto, o aumento do encontro entre o vírus Oropouche e o mosquito A. aegypti é um coquetel potencialmente explosivo, possibilitando a adaptação do vírus a um mosquito amplamente distribuído no Brasil e no mundo, e que apresenta enorme capacidade vetorial para transmitir viroses.

Tudo que foi abordado acima não deve ser entendido como motivo de pânico, mas certamente são aspectos que devem ser levados seriamente em consideração por especialistas, governantes e pela população em geral. Afinal, estejamos ou não vivendo o antropoceno, nós certamente já vivenciamos os impactos de nossas próprias ações sobre a biosfera terrestre.

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