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Imagem mostra diversas galáxias nos confins do Universo
Imagem de campo profundo do telescópio espacial Hubble: J-PAS vai coletar dados de centenas de milhões de galáxias para tentar responder algumas das questões mais profundas da astrofísica e da cosmologia, como o que está acelerando a expansão do Universo. NASA/ESA/S. Beckwith (STScI)/HUDF Team, CC BY

Com participação do Brasil, novo mapa 3D do Universo poderá responder questões fundamentais da cosmologia

Em 2009, um grupo de astrofísicos da Espanha encontrava-se numa situação peculiar: eles haviam assegurado financiamento para um telescópio com espelho de 2,5m que seria ideal para mapear o Universo, observando de uma só vez grandes áreas do céu. Mas eles não tinham recursos para montar a câmera que deveria ser instalada nesse telescópio.

Ao mesmo tempo, um grupo de astrofísicos brasileiros enfrentava um desafio diferente: como nos tornar protagonistas numa área de ponta como levantamentos detalhados do Universo sem termos nenhum grande telescópio dedicado a esse tipo de ciência? Nas décadas até 2009 o Brasil desenvolveu uma capacidade de instrumentação científica notável, em particular na astronomia, mas não tínhamos acesso a telescópios de grande porte com amplo campo de visão, essenciais para conduzir mapas 3D do Cosmos.

O telescópio T250 em seu domo no Observatório Astronômico de Javalambre, Espanha. A câmera JPCam, produzida no Brasil, aparece montada na base do telescópio. CEFCA, CC BY

Algumas coincidências e um bocado de sorte aproximaram esses dois grupos e assim surgiu o experimento J-PAS: uma colaboração entre astrofísicos espanhóis e brasileiros, na qual a Espanha entrou com o telescópio e o Observatório Astronomico de Javalambre (localizado na Serra de Javalambre, na província de Terual, região central da Espanha), enquanto o Brasil construiu a JPCam, câmera que capta os dados para o J-PAS.

Em setembro de 2023, após 14 anos desenhando e montando o experimento, o J-PAS finalmente começou a mapear o céu, a uma velocidade de centenas de graus quadrados por ano (ou seja, em dez anos o J-PAS terá mapeado metade do céu visível desde a Espanha, ou um quarto de todo o céu da Terra). Mas o que torna o J-PAS realmente único entre os grandes levantamentos de galáxias é o modo como ele coleta os dados.

O Telescópio T250 e a câmera JPCam. [Trechos retirados do filme curta-metragem “Arco de choque”, de Javier Díez/CEFCA]

Em astronomia, como em várias outras áreas da ciência, frequentemente temos de escolher entre observar poucos objetos em grande detalhe, ou muitos objetos com pouco detalhe. Isso significa que mapas do Universo tradicionalmente acabam caindo em uma de duas categorias: ou se escolhe a dedo um número reduzido de galáxias, que são observadas minuciosamente por meio de espectrógrafos (instrumentos que decompõe a luz de modo similar a um prisma), ou tiramos fotografias do céu de um modo similar ao que os nossos olhos fazem - mas, claro, com nitidez e profundidade muito maiores.

O J-PAS buscou uma nova estratégia, que permite observar um grande número de galáxias, mas com uma ótima qualidade de dados. Isso é feito por meio de um sistema de bandas estreitas (filtros coloridos), que permite estudar a luz dos objetos de modo muito mais detalhado que uma imagem normal. Nós então observamos uma certa área do céu múltiplas vezes, com cada um dos filtros.

Assim, enquanto os levantamentos espectroscópicos convencionais são capazes de estudar alguns milhões de galáxias, o J-PAS vai coletar dados de centenas de milhões delas simultaneamente, com detalhe suficiente para tentar responder algumas das questões mais profundas da astrofísica e da cosmologia. E, de quebra, devido à simplicidade desse novo instrumento, os custos são cinco a dez vezes menores do que os de levantamentos de galáxias realizados com espectrógrafos, o que foi crucial para viabilizar o financiamento da câmera no Brasil.

Filtros e espectros do J-PAS. [Trechos retirados do filme curta-metragem “Arco de choque”, de Javier Díez/CEFCA]

Mapas do Universo e ciência fundamental

Alguns dos desafios mais fundamentais da ciência estão ligados diretamente à cosmologia. Um desses mistérios é o que está por trás da expansão acelerada do Cosmos, descoberta em 1998 por meio de observações de supernovas e que rendeu o Prêmio Nobel de Física de 2011 a um trio de astrônomos.

A teoria mais aceita para o “combustível” dessa expansão acelerada é a Constante Cosmológica, proposta inicialmente pelo próprio Albert Einstein quando da formulação da Teoria da Relatividade Geral, há mais de 100 anos. Mas também é perfeitamente possível que essa aceleração cósmica seja fruto de uma forma exótica de energia, de natureza ainda desconhecida, o que seria um novo tipo de força na física que, por falta de um nome melhor, chamamos de “energia escura” (que não deve ser confundida com a matéria escura, que tem sido detectada indiretamente entre as galáxias desde 1930, mas cuja partícula correspondente ainda não foi identificada). Outra possibilidade ainda é que a expansão acelerada seja causada pela própria força da gravidade, caso ela não se comporte exatamente como prevê a Teoria da Relatividade Geral de Einstein.

Mas, qualquer que seja a resposta, a física será profundamente afetada. Se a Constante Cosmológica for a responsável pela aceleração, ela seria a constante da natureza mais exótica, mais estapafúrdia que se poderia imaginar: algo tão minúsculo que é quase impossível entender como poderia estar conectada ao resto da física. Em escalas de grandeza, há uma enorme distância entre a Constante Cosmológica e todo o restante da física que conhecemos até hoje - numa comparação livre, é como se a física fosse da Terra, e a Constante Cosmológica de Plutão.

Por outro lado, se existe algum tipo de energia escura causando a aceleração, temos um novo campo e portanto uma nova interação fundamental na natureza – mas, novamente, algo tão diferente dos outros campos e partículas que conhecemos que imediatamente novas janelas seriam abertas na física.

Por fim, se a gravidade é modificada com respeito à Relatividade Geral, levando à aceleração da expansão, isso também seria chocante: de algum modo, em certas situações, a gravidade teria de se tornar repulsiva.

O mapa 3D do Universo que começa a ser montado pelo J-PAS vai ajudar a desvendar a natureza daquilo que causa a expansão acelerada. Com ele, vamos estudar a distribuição espacial não apenas de galáxias, mas também de quasares - buracos negros supermassivos que engolem imensas quantidades de matéria, emitindo radiação tão intensa que nos permite ver esses objetos a bilhões de anos-luz de distância. Além de revelar a distribuição espacial das galáxias, esses mapas mostram como o Universo evoluiu com o tempo - afinal, quando observamos uma galáxia mais distante, estamos também olhando mais para o passado, devido à velocidade finita da luz.

Como o J-PAS vai mapear o Universo. [Trechos retirados do filme curta-metragem “Arco de choque”, de Javier Díez/CEFCA]

O imenso número de galáxias do J-PAS, combinado com a qualidade dos dados coletados delas, nos permitirá ter um mapa mais rico e completo do que outros levantamentos já feitos, com diferentes tipos de galáxias e outros objetos que vão nos ajudar a entender a natureza do que está por trás da aceleração cósmica. E, pela primeira vez, um time de cientistas brasileiros participa em pé de igualdade com europeus num novo instrumento astronômico de ponta dedicado a mapear o Universo, abrindo portas para que outros cientistas e estudantes brasileiros possam liderar as novas descobertas que virão com os dados do J-PAS.

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