Menu Close
O objetivo dos cuidados paliativos é cuidar das questões físicas, psicoemocionais, espirituais e sociais de uma pessoa no fim da vida, na busca de uma morte “natural” e “boa” (ortotanásia), sem sofrimento evitável e desmesurado. AP Photo/Rishabh R. Jain

O direito de morrer em casa, sem dor ou sofrimento, é desafio de uma sociedade que vive cada vez mais

Vânia tinha 65 anos e um câncer de mama em metástase. Ela falava com dificuldades e precisava de nebulização frequente para auxiliar com sua respiração. Natural de Fortaleza, trabalhou como manicure no Rio de Janeiro por muitos anos. Quando a conheci, ela morava com suas filhas, sobrinhas e a irmã, Vitória, que se mudou de sua cidade natal para cuidar dela.

Vânia estava inserida em um modelo de assistência não curativo, focado no alívio da dor e dos sintomas, na possibilidade de estadia em casa em vez da hospitalização, na participação da família e na busca por uma “boa morte”. Esse modelo ganhou o nome de cuidados paliativos, a princípio vinculado ao movimento hospice. O objetivo dos cuidados paliativos é tratar o indivíduo como ser multidimensional, isto é, contemplando suas questões físicas, psicoemocionais, espirituais e sociais, optando por intervenções não-curativas e pelo não prolongamento da vida diante do diagnóstico de terminalidade.

Diferente da interrupção da vida (eutanásia) ou de sua extensão (distanásia), os cuidados paliativos buscariam uma morte “natural” e “boa” (ortotanásia), isto é, sem que houvesse sofrimento evitável e desmesurado.

Muitos atores trabalhando por uma boa morte

Os cuidados paliativos propõem uma forma de dividir o trabalho de cuidado no fim da vida e uma concepção de morte e morrer. A figura do médico é deslocada em favor de uma constelação maior de atores, incluindo profissionais da área de saúde, voluntários (mais comuns em instituições do tipo hospice na Inglaterra, por exemplo) e a família. Esta última é uma das protagonistas na história recente da abordagem paliativa, aparecendo tanto como agente quanto como objeto do cuidado.

Nesse arranjo, a casa aparece como espaço legítimo e sagrado, o “melhor lugar para morrer”. Esse modo de organizar os cuidados no fim da vida coloca algumas questões: em que condições a casa é realmente o melhor lugar para morrer? Quem decide o que é “melhor” para o paciente e para os familiares? Como incluir a família sem onerá-la demasiadamente nem a responsabilizar para além de suas capacidades?

A morte é reinterpretada à luz de uma crítica ao que se percebe como “excessos” da medicina. Esta viu na morte uma adversária a ser combatida, geralmente através da multiplicação de tecnologias e técnicas cada vez mais complexas de estender a vida. Como resultado, argumentam os paliativistas, temos vidas mais longas, mas de menor qualidade, cheias de sofrimento e dor.

Uma boa morte seria aquela que vem após um processo de morrer sem sofrimento desnecessário e excessivo, no qual métodos paliativos são privilegiados em detrimento de métodos curativos, considerados fúteis diante da irreversibilidade da doença. Isso não significa somente alívio físico, mas o tratamento da “dor total”, conceito de Cicely Saunders para descrever o conjunto de aflições físicas, psíquicas, emocionais, espirituais e sociais no processo de morrer.

Cuidados paliativos num contexto de vulnerabilidade

Conheci Vânia em um serviço de assistência domiciliar e desospitalização da cidade do Rio de Janeiro, que acompanhei durante um período de aproximadamente um ano. Ao lado de uma das equipes que adotam a abordagem dos cuidados paliativos na rede pública, visitei as casas dos pacientes, testemunhei suas conversas e observei seu dia a dia.

Na primeira visita que fiz à casa de Vânia, acompanhado da psicóloga da equipe, descobri que ela e sua irmã esperavam um tanque de oxigênio que havia sido mencionado em uma visita anterior. A psicóloga, após retornar ao hospital, perguntou aos membros da equipe e soube que era impossível fornecer o tanque a Vânia, pois o serviço contava com somente duas unidades, uma em uso por outro paciente e outra defeituosa.

Vânia e sua irmã, Vitória, falaram sobre o esforço para pagar exames laboratoriais, em virtude da demora do serviço público de saúde, e da ajuda de vizinhos, familiares e amigos para arcar com os custos. Apesar da doença e das dificuldades, Vânia era bem-humorada e muito querida pela equipe de saúde.

No fim da visita, Vitória nos acompanha até o portão e diz que sabe que sua irmã não tem muito mais tempo. Ela conta que Vânia tenta falar sobre o que vai acontecer quando ela morrer, mas não tem coragem de conversar sobre isso com a irmã. Conta também que tem andado muito cansada, dorme poucas horas durante a noite e está constantemente preocupada com a irmã. Fala da sua casa, seu marido e filho, que não vê há algum tempo. Então reforça que tem que estar ali e faz isso com alegria, pois Vânia cuidou dela e das outras irmãs a vida toda.

Mulheres na linha de frente da boa morte

A inserção no serviço de assistência domiciliar é condicionada à designação de um “cuidador primário”, que quase invariavelmente é uma mulher com algum laço de parentesco com a pessoa adoecida. E o trabalho de cuidar no fim da vida é ainda mais delicado em contextos nos quais as vulnerabilidades física e social se cruzam.

No caso de Vânia e Vitória, o alívio dos sintomas e da dor encontrava barreiras na falta de equipamentos do hospital e no tempo de espera para os exames. As irmãs então buscaram ajuda e mobilizaram suas redes, misturando soluções públicas e privadas em uma ecologia local do cuidado. A assistência da equipe do hospital era elogiada e bem-vinda por elas, mas grande parte do trabalho cotidiano de cuidado era realizado por Vitória, que se via cansada e triste, como tantas outras mulheres em sua posição.

Embora os cuidados paliativos prezem pela “redução” de intervenções, isso não significa negligência ou ausência. Do contrário, a quantidade de remédios e insumos necessários à manutenção da “qualidade de vida” no morrer não deve ser subestimada. Mais ainda, o trabalho de cuidado, com suas demandas cognitivas, emocionais, físicas e temporais, é tão mais intenso quanto mais irreversível é a condição. Em outras palavras, cuidar no fim da vida é exercer um trabalho provisório de compor sujeitos, sentimentos, objetos e tempo em arranjos instáveis, sempre fadados a falhar.

É a forma de costurar a irreversibilidade do tempo da vida em sua marcha para o fim com as reversibilidades do corpo em sociedade, que é tanto sujeito quanto objeto, potência e carência, abundância e necessidade. Assim, a composição de arranjos de cuidado minimamente satisfatórios para todos os envolvidos, incluindo os cuidadores, é um dos principais desafios do mundo contemporâneo.

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 182,800 academics and researchers from 4,948 institutions.

Register now