Menu Close
Uma representação da convergência entre máquinas e seres humanos.
Transumanismo: o conceito de evolução das capacidades humanas por meio da tecnologia seduz a elite mundial, mas desvia a atenção aos desafios e injustiças mais urgentes da atualidade, e pode deixar o mundo ainda mais desigual. Kotin / Shutterstock

Transumanismo: bilionários querem usar tecnologia para aprimorar nossa existência. Mas os resultados podem mudar o significado de ser humano

Muitas pessoas importantes do setor de tecnologia estão falando sobre a crescente convergência entre humanos e máquinas nas próximas décadas. Elon Musk, por exemplo, teria dito que deseja que os seres humanos fundam-se com a Inteligência Artificial para “alcançar uma simbiose entre as duas inteligências”.

Sua empresa Neuralink afirma que tem como objetivo facilitar essa convergência, para que os humanos não sejam “deixados para trás” com o avanço da tecnologia no futuro. Embora as pessoas com deficiência sejam os destinatários de curto prazo das inovações da Neuralink, alguns estudiosos acreditam que tecnologias que integram o cérebro humano com recursos de IA podem, teoricamente, ser usadas para aprimorar a existência de qualquer pessoa.

Esses objetivos são inspirados pela ideia de Transumanismo, a visão de que é possível usar a ciência e a tecnologia para aprimorar radicalmente as capacidades humanas, e com isso permitir à humanidade buscar direcionar o seu próprio caminho evolutivo.

As doenças, o envelhecimento e a morte são realidades que os transumanistas desejam acabar, além de aumentar drasticamente nossas capacidades cognitivas, emocionais e físicas.

Os transumanistas geralmente perseguem três “super” conceitos: superinteligência, superlongevidade e superfelicidade. Sendo que esta última se refere a maneiras de se alcançar um sentimento de contentamento permanente.

Há muitas opiniões diferentes, mesmo entre a comunidade transumanista, sobre como deveria ocorrer essa evolução contínua.

Por exemplo, alguns defendem o upload da mente em formato digital e a colonização do cosmos como formas de transumanização. Outros acham que devemos continuar sendo seres orgânicos, mas reconectando ou atualizando nossa biologia por meio de engenharia genética e outros métodos. A ideia de um futuro de bebês projetados, úteros artificiais e terapias antienvelhecimento atrai esses pensadores.

Tudo isso pode parecer exageradamente futurista e fantástico. Mas os rápidos avanços da inteligência artificial e da biologia sintética registrados recentemente levaram alguns estudiosos a argumentar que estamos prestes a permitir que essas possibilidades aconteçam em larga escala.

Papel de Deus

Os bilionários do setor de tecnologia, por exemplo, estão entre os maiores promotores do pensamento transumanista. Não é difícil entender o motivo: eles podem ser os financiadores - e os protagonistas - de um possível momento crucial de mudança na história da Humanidade.

A criação da chamada Inteligência Geral Artificial (AGI) - ou seja, um sistema de IA capaz de realizar todas as tarefas cognitivas que um ser humano pode fazer e muito mais - já é o foco atual de alguns setores do Vale do Silício. A AGI é vista como vital para permitir que a Humanidade assuma o que seria, segundo alguns, o papel “divino” de projetar o nosso futuro evolutivo.

Terapia antienvelhecimento.
As terapias antienvelhecimento estão entre as tecnologias que podem aprofundar a desigualdade. Africa Studio

É por isso que empresas como OpenAI, DeepMind e Anthropic estão concorrendo para o desenvolvimento da AGI. E ignorando o alerta levantado por alguns especialistas de que o desenvolvimento desse conjunto de tecnologias, sem o devido cuidado, poderia levar, até mesmo, à extinção da humanidade.

No curto prazo, as promessas e os perigos dessa possibilidade soam - e provavelmente são - exagerados. Afinal, essas empresas já têm muito a ganhar apenas por nos fazer acreditar que estão mesmo prestes a desenvolver um poder “divino” capaz de criar uma utopia coletiva de evolução cognitiva dos seres humanos.

Enquanto isso, na prática, uma das coisas que a IA tem feito de realmente perigoso é alimentar a propagação de um cenário político polarizado em diferentes partes do mundo, onde a desinformação e outras formas mais complexas de manipulação de pensamento tornam-se a cada dia mais eficazes.

Na verdade, os sistemas de IA já estão causando muitas formas de danos sociais e ambientais. Mas até o momento as empresas do setor raramente querem lidar com esses problemas. Pelo contrário: se elas conseguem fazer com que governos se concentrem em questões de “segurança” de longo prazo relacionadas a possíveis riscos existenciais causados pelo advento da IA, injustiças sociais e ambientais reais continuarão sendo deixadas de lado.

Mas se não tivermos a capacidade e a determinação para lidar com esses danos no mundo real, é difícil acreditar que conseguiremos mitigar os riscos de maior escala que a IA pode hipoteticamente possibilitar. Se realmente houver uma ameaça de que a AGI possa representar um risco existencial para toda a humanidade, por exemplo, todos arcarão com esse custo. Só os lucros que serão cada vez maiores e dirigidos a cada vez menos gente.

Uma história familiar

Esse problema no desenvolvimento da IA pode ser visto como um microcosmo do motivo pelo qual a imaginação transumanista mais ampla pode atrair as elites bilionárias em uma época de múltiplas crises. Ela fala sobre a recusa em se envolver com a ética, as injustiças e os desafios fundamentados e oferece uma narrativa grandiosa de um futuro resplandecente para distrair a população do momento atual.

Nosso mau uso dos recursos do planeta deu início a uma sexta extinção em massa de espécies e a uma crise climática. Além disso, as guerras contínuas com armas cada vez mais potentes continuam fazendo parte de nossa evolução tecnológica.

Há também a questão premente de quem será o futuro transumano. Atualmente, vivemos em um mundo muito desigual. O transumanismo, se for desenvolvido em algo parecido com nosso contexto atual, provavelmente aumentará muito a desigualdade e poderá ter consequências catastróficas para a maioria dos seres humanos.

Talvez o próprio transumanismo seja um sintoma do tipo de pensamento que criou nossa triste realidade social atual. É uma narrativa que nos incentiva a pisar fundo no acelerador, expropriar ainda mais a natureza, continuar crescendo e não ver, pelo espelho retrovisor, a devastação que deixamos trás.

Se estivermos realmente prestes a criar uma versão aprimorada de uma parcela diminuta da humanidade, devemos começar a fazer algumas perguntas importantes sobre o que significa ser humano, e quais seriam as implicações dessa evolução restrita apenas a alguns poucos.

Se o ser humano for de fato um aspirante a Deus, então ele reivindica o domínio sobre a natureza e o corpo, tornando tudo passível de seus desejos. Mas se, ao contrário, o ser humano for apenas um animal mais evoluído que os demais, inserido em relações complexas com outras espécies e com a natureza em geral, então esse “aprimoramento” dependeria da saúde e da sustentabilidade dessas relações.

Por outro lado, se a simples existência humana na Terra for de fato uma ameaça ambiental, então o aprimoramento da nossa humanidade seria certamente um caminho para redirecionar nossos modos de vida ancestralmente exploradores rumo a um futuro mais sustentável.

Talvez tornar-se mais do que humano possas permitir a constituição de uma humanidade mais responsável. Uma humanidade que demonstre compaixão e consciência da importância de outras formas de vida neste planeta. Isso seria preferível a seguir colonizando e expandindo apenas os horizontes da nossa própria existência, às custas de todas as demais espécies. O que poderá levar, muito possivelmente, à nossa própria extinção.

This article was originally published in English

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 182,800 academics and researchers from 4,948 institutions.

Register now