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Com a pandemia, psicólogos e pacientes tiveram que se adaptar à realidade das consultas virtuais. Novo formato do atendimento traz vantagens, mas também riscos. AP Photo/Moises Castillo

Serviços virtuais de saúde mental: os desafios de um caminho sem volta

Hoje, com todas as opções de vídeo streaming disponíveis, você consegue se imaginar em algum momento saindo de casa para alugar um DVD? Provavelmente não. De alguma forma, um processo similar se observa nos serviços de saúde.

A necessidade de implementar o distanciamento social durante a pandemia de covid-19 nos abriu novas opções de comunicação, trabalho e lazer com o uso da tecnologia. E as áreas da saúde e da educação foram particularmente beneficiadas pelas tecnologias remotas. A telemedicina, por exemplo, que antes era uma prática restrita a algumas especialidades da saúde, tornou-se uma prática regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina após ser amplamente adotada durante a pandemia.

Mas essa transição de uma prática tradicionalmente presencial para um ambiente virtual não se dá livre de desafios. Neste cenário, o paciente é a parte mais vulnerável: ele necessita do serviço, mas enfrenta obstáculos, como falta de acesso ou analfabetismo tecnológico, especialmente os idosos. Do outro lado, os profissionais de saúde (médicos, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeuta e outros) não foram capacitados na universidade para exercer suas especialidades em um ambiente virtual.

Apesar dos desafios, o atual cenário de crescente digitalização dos serviços de saúde nos mostra que não há volta: tanto pacientes quanto profissionais de saúde terão que se adaptar a um novo modelo de serviço de saúde digital.

Na saúde mental, esses desafios são enormes. Para compreender o impacto do uso da telemedicina nesse cenário, acompanhamos pacientes e psicólogos em um serviço de telemedicina do SUS no estado do Paraná ao longo de um ano. O estudo foi conduzido em três fases, totalizando 67 entrevistas e grupos focais, com o intuito de compreender desde o impacto inicial até a adoção da telemedicina. Os resultados foram publicados na renomada revista internacional Public Administration.

Primeiro encontro: “o diabo mora nos detalhes”

As primeiras dificuldades enfrentadas pelos psicólogos, quando precisaram transferir seus consultórios para uma plataforma virtual, foram no uso da tecnologia. Mas os problemas técnicos foram só o prenúncio de um desafio muito maior: o de conseguir realizar uma avaliação visual do paciente. Na psicologia, a análise de “pistas” corporais (movimentos involuntários) auxilia o psicólogo na avaliação do paciente. Durante uma consulta por vídeo, no entanto, muitos desses “detalhes” ficam ocultos.

Já para os pacientes, a mudança para um “consultório virtual” representou, num primeiro momento, uma maior liberdade para se abrir mais com o psicólogo. Mas muitos deles tiveram que lidar com a falta de privacidade em casa. Com frequência, temas sensíveis - inclusive relacionados a problemas no ambiente doméstico do paciente - eram evitados com medo de que alguém pudesse escutar.

Adaptação: “a espada de dois gumes”

Com o tempo, a falta de controle sobre o ambiente em que se encontravam os pacientes foi se revelando para os psicólogos, acostumados com certo controle no ambiente dos consultórios, como uma “espada de dois gumes”; por um lado, o paciente se sentia mais confortável para se abrir com o psicólogo em seu lar; por outro, esse ambiente criava uma excessiva informalidade. Não raro, as consultas sofriam com interrupções, presença de crianças, barulho de televisão, entre outros.

Já para a maioria dos pacientes, após o primeiro encontro com a tecnologia, o uso da telemedicina no tratamento foi percebida como algo natural, quando comparado às sessões presenciais. Além disso, o paciente como “juiz de valor” do serviço identificou benefícios da telemedicina: a consulta virtual pareceu mais conveniente, permitindo uma facilidade de acesso e uma economia de tempo e dinheiro.

Adoção da tecnologia: “um caminho sem volta”

Após um ano realizando este estudo, identificamos uma tendência: os psicólogos reconhecem que a telemedicina é uma ferramenta adicional de suporte na terapia, mas avaliam que ela não é não um substituto das práticas tradicionais. Além disso, os profissionais concordam que o atendimento virtual não é uma “bala de prata” que serve para todos os pacientes.

Do lado dos pacientes, identificamos uma percepção de serviço mais personalizado, onde a confiança no psicólogo foi o principal ponto para se criar um vínculo no ambiente virtual. Essa percepção positiva é fruto de uma processo de aprendizagem, em que os pacientes tiveram que se adaptar, com a ajuda do psicólogo, com questões de formalidade e privacidade na terapia online.

Lições para o futuro

Um dos grandes desafios do uso da telemedicina na psicologia foi a reconstrução do chamado “setting terapêutico” no ambiente virtual. Isso só foi possível graças à flexibilidade do psicólogo, que adaptou práticas do consultório físico para o virtual, e também com a ajuda do paciente, que colaborou na co-criação desse novo serviço com base nas suas necessidades. Essas são lições que transcendem a prática da telemedicina na saúde mental, levando-nos a refletir sobre como podemos adaptar novas tecnologias nos diversos serviços de saúde.


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A tendência é que o uso de tecnologia para apoiar atividades humanas se torne cada vez mais proeminente. O que temos observado é um aumento significativo do uso de Inteligência Artificial para relacionamento com clientes e suporte a idosos e pessoas com deficiência física. Além disso, o setor de saúde tem se beneficiado da análise de dados pessoais (big data) por meio de dispositivos inteligentes (smartwatches e outros wearables).

Nesse sentido, dois pontos são crucias para uma digitalização sustentável dos serviços de saúde. Primeiramente, é fundamental criar e ampliar regulamentações que protejam a privacidade e segurança dos pacientes. Novos serviços estão em constante criação, como, por exemplo, o uso de realidade virtual no chamado Metaverso, que já se tornou uma realidade no tratamento do transtorno do espectro autista. No entanto, a exemplo das redes sociais, essas interações podem apresentar riscos aos pacientes.

Em segundo lugar, é necessário atualizar os currículos das universidades para que o uso da tecnologia seja integrado ao ensino dos alunos. A tecnologia não substitui o profissional de saúde, mas atua como um aliado que pode ampliar as opções de tratamento e beneficiar os pacientes.

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