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Vitória do anarco-capitalista Javier Milei sobre o peronista Sergio Massa na Argentina simboliza a ascensão de um fenômeno político enraizado no conservadorismo. AP Photo/Natacha Pisarenko

Sucessão na Argentina: A eleição de Javier Milei e a “utopia neorreacionária” da ultradireita latino-americana

O “fenômeno Javier Milei” fez ressoar os alarmes contra a ultradireita no Cone Sul apenas poucos meses após a vitória de Lula, em 2022. O temor - que se confirmou com a vitória de Milei na eleição deste domingo, 19 de novembro - brotou, sobretudo, entre os membros do progressismo em todo o continente americano. Não apenas pelas características e táticas aparentemente similares entre Milei, Jair Bolsonaro e Donald Trump, mas também pela fragilidade dos governos de centro-esquerda que chegaram ao poder após o verdadeiro dique de contenção que a década de 2010 impôs à chamada “maré rosa” dos governos progressistas dos primeiros dez anos do século XXI.

O candidato Javier Milei: discurso inflamado sensibiliza camada mais conservadora da população, e que têm sofrido com a crise econômica. AP Photo/Rodrigo Abd

Tristemente anunciada pelo golpe em Dilma Rousseff, em 2016, começaram a era de Trump nos EUA (2017-2021), de Bolsonaro no Brasil (2019-2022), de Sebastián Piñera no Chile (2018-2022), de Iván Duque na Colômbia (2018-2022), de Maurício Macri na Argentina (2015-2019), de Enrique Peña Nieto no México (2012-2018) e de Lenín Moreno no Equador (2017-2021). Adornando esta guinada à direita, houve o golpe de Estado policial-civil-militar na Bolívia contra Evo Morales, em 2019.

Pelas urnas ou por processos jurídico-políticos acomodados sob o rótulo de “impeachment”, os governos social-democratas latino-americanos da “maré rosa” refluíram. E agora, alguns anos depois, ensaiam um retorno. O primeiro desta nova leva a voltar, ainda em 2018, foi Andrés Manuel López Obrador no México. Em seguida, em 2019, Alberto Fernández, na Argentina. Na sequência e no mesmo ano de 2022, vieram Gabriel Boric, no Chile, Gustavo Petro, na Colômbia, e Lula, eleito presidente pela terceira vez no Brasil.

O surgimento da “Direita alternativa”

Todos estes mandatários, genericamente alinhados como “progressistas”, têm ou tiveram atitudes contraditórias e erráticas sobre temas como aborto, controle civil sobre os militares, política econômica, política climática e proteção aos direitos humanos e de minoria. Foram, em sua maioria, eleitos em pleitos acirrados e com pequenas margens de voto e governam sob a ameaça constante das direitas e das ultradireitas que seguem firmes e mobilizadas.

Nesta conturbada década entre 2010 e 2020, a “polarização política” tornou-se a situação corrente não apenas nas Américas, mas em todo o planeta. Do Brexit às Filipinas, de Putin na Rússia a Netanyahu em Israel e Modi na Índia, passando pela Polônia, Hungria e Turquia, até chegar ao crescimento do partido de ultradireita espanhol Vox, disseminou-se pelo globo o que a literatura especializada chamou, não sem disputas, de alt-right (“direita alternativa”).

Para o historiador argentino Pablo Stefanoni este selo é útil, mas por si só não explica uma coleção diversa e multifacetada de posicionamentos éticos, políticos e sobre a vida econômica. No entanto, para o autor, essa ultradireita encontra-se reunida sob o signo da “rebelião”. Em seu livro “La rebeldía se volvió de derecha? Cómo el antiprogresismo y la anticorreción política están construyendo un nuevo sentido común (y por qué la izquierda debería tomarlos en serio)”, lançado em 2021 em espanhol e, no ano seguinte em português pela Editora da Unicamp, Stefanoni aborda o tema das novas direitas radicais pelo viés da sua capacidade de mobilização do descontentamento e das frustrações dos “esquecidos pela globalização”.

O cerne da sua perspectiva não é necessariamente novo, pois desde os anos 1920 e 1930, ao serem analisados os processos de ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão, elementos como estes foram explorados no campo da psicologia das massas – como Wilhelm Reich, por exemplo – como expressão político-ideológica e social de grande impacto do recalque individual.

“A rebelião das direitas”

Stefanoni, todavia, atualiza essa discussão e apresenta um grande e didático mapeamento das muitas variações daquilo que chama “rebelião das direitas”. Pela exposição de Stefanoni, notamos que as peças deste tabuleiro podem não ser realmente novas, mas a disposição delas, os seus movimentos, táticas e relacionamentos são diferentes das “velhas direitas”, mesmo das fascistas históricas, fato que produz um fenômeno evidentemente original.

Do mesmo modo que o “progressismo” é plural e heterogêneo, a nova direita radical também o é. São skinheads, supremacistas brancos, xenófobos, racistas, classistas, opositores dos direitos reprodutivos, inimigos da diversidade de afetiva e de gênero, saudosistas de passados autoritários, nacionalistas e ultraliberais. No Brasil de Bolsonaro foi possível testemunhar como estas forças, articuladas a partir da combinação de valores e práticas seculares e de suas atualizações em tempos globalizados, subiram ao poder e, no 8 de janeiro de 2023, tentaram assaltá-lo.

A diversidade, como costuma acontecer, torna-se menos aparente quando unida contra um inimigo comum. Com a alt-right não é diferente. Stefanoni indica como a ultradireita atual opera esse nivelamento ao utilizar dois “conceitos” amplos o suficiente para incluir a muitos tipos de indignados: o “marxismo cultural” e o “politicamente correto”.

“Marxismo cultural” é o vago e maleável conceito que inclui tudo e todos que defendem temas ou agendas consideradas progressistas. Estas agendas são as mais variadas e não são necessariamente todas articuladas ou harmônicas entre si. Mas na avaliação dos ultrarradicais de direita elas compõem um todo homogêneo. São algumas delas a defesa da justiça social, da saúde e da educação universais, de que os serviços públicos sejam controlados pelo Estado, de que sejam respeitados os direitos de minorias, o acolhimento a refugiados, os direitos reprodutivos das mulheres, a linguagem inclusiva, a democracia, o controle de armas de fogo etc.

Na avaliação da ultradireita, haveria uma grande conspiração progressista mundial – o globalismo – baseada em princípios que dinamitam os fundamentos da civilização judaico-cristã e que são impulsionados por uma elite cosmopolita que controla a economia global e os poderes políticos e militares do mundo. Esta elite governaria o mundo por meio de uma constante “lavagem cerebral” e pela “degeneração moral”, transformando as populações em todo o planeta numa espécie de grande massa de manobra.

Apoiadores de Milei com fantasias e camisas da seleção: símbolos populares criam identificação. AP Photo/Rodrigo Abd

Dentre as armas deste “globalismo hegemônico” estaria o “politicamente correto”. É assim que a alt-right denomina a forma pela qual se designa as mudanças tanto na linguagem, quanto nas práticas e procedimentos formais que procuram compensar ou reverter injustiças e violências históricas como o racismo, a LGBTQIA+fobia, o sexismo, a misoginia, o capacitismo, entre outras.

Para a nova ultradireita o “politicamente correto” impõe uma “ditadura”, limitando o que pode e que não pode ser dito ou praticado. Ora, sempre houve normas sociais e regras escritas estabelecendo o que pode e o que não pode ser dito ou praticado. A diferença, agora, é que as formas de dizer e de praticar exercitadas por séculos por setores dominantes nas mais diversas sociedades passaram a ser desafiadas ou diretamente perseguidas e criminalizadas. Assim, pela defesa da “liberdade de expressão” perfilam-se desde “tiozões do zap” até agressores, feminicidas e os políticos da nova extrema-direita.

Princípios básicos do liberalismo filosófico, como a própria noção de “liberdade de expressão”, foram apropriados pela alt-right como elementos de uma luta justa e necessária contra os vilões de sempre – professores/as, autores/as de livros e de telenovelas, diretores/as de cinema, políticos profissionais de esquerda, cantores/as pop – que disseminam, “doutrinam” e difundem o “politicamente correto” por todos os meios possíveis.

O poder político da paranoia

Essa percepção de uma ameaça sempre presente e ardilosa chama a atenção para um dos elementos básicos do discurso da ultradireita: a paranoia. O “Estado”, as “corporações”, “os chineses”, os “progressistas”, os “comunistas”, as universidades, as princesas da Disney entre outros tantos estariam sempre agindo sorrateiramente para colocar em marcha um plano astuto voltado a lucrar muitos bilhões de dólares enquanto, na passagem, destrói a “civilização ocidental”.

Stefanoni nos lembra que o discurso paranoico é poderoso porque alinha várias características. Vejamos três delas. A primeira é a sensação de “inteligência” e de “conhecimento” que gera no indivíduo paranoico. Geralmente sendo uma pessoa medíocre e sem nenhum poder de fato – ou que se sente limada de “poderes” que costumava ter, como o do machismo e dos privilégios de raça e/ou classe –, o paranoico encontra explicações aparentemente fantásticas para dar sentido a um mundo no qual ele é um “perdedor” (loser). Deste modo, exime-se de qualquer responsabilidade individual pelo seu “fracasso” e tampouco compreende as razões estruturais objetivas para ele.

O segundo deles deve-se ao fato de que toda paranoia, assim como toda “fake news”, empresta credibilidade de fatos reais que são descontextualizados ou manipulados de modo a parecerem a expressão da verdade. Repetidas muitas vezes e por pessoas e/ou meios considerados críveis, essas quase-mentiras tornam-se certezas. As mídias eletrônicas tornaram viável tecnicamente o processo de criar e de difundir estas “verdades”. Quando um “crente” recebe por vários meios a mesma informação, a sua paranoia é reforçada e, uma vez “confirmada”, ele passar a praticá-la na sua vida cotidiana e a retransmite pelos meios que utiliza.

Um terceiro elemento importante da paranoia tem a ver, precisamente, com o tema central do livro de Stefanoni: a “desconfiança com relação ao poder”. Este sentimento segue sendo sedutor e empoderador, reforçando a ideia de que o paranoico tem acesso a algo que os demais não têm. Como é disseminada a crença de que elites e Estados praticam sistematicamente ações ilegais em nome de interesses escusos – porque, de fato, o fazem – qualquer tipo de “plano secreto” parece ser viável, por mais fantasioso que seja (ou, talvez, exatamente por isso).

Os sentimentos de derrota, de amargura e de indignação, quando combinados com valores e práticas há muito enraizados (como o racismo, a xenofobia, o machismo e a intolerância religiosa) promovem uma combinação explosiva que foi explorada por políticos que emergiram na geração de Trump, Boris Johnson, Bolsonaro e, agora, Javier Milei.

É interessante notar que nenhum destes homens é um excluído do sistema. Pelo contrário. O primeiro é um multimilionário e estrela da cultura pop estadunidense, o segundo é um jornalista de sucesso formado em Oxford, Bolsonaro formou-se na Academia das Agulhas Negras e foi por três décadas ininterruptas deputado federal pelo Rio de Janeiro. Milei, curiosamente, é o de origem mais humilde, sendo filho de um motorista de ônibus. Mesmo assim, estudou em universidades prestigiosas de Buenos Aires e fez carreira em bancos privados. Ou seja, todos são bem-sucedidos em suas profissões, mas fizeram do fracasso generalizado pela própria ordem liberal e capitalista que defendem a matéria-prima para as suas carreiras políticas.

Stefanoni, no entanto, alerta que para entender o fenômeno da nova ultradireita radical não se deve cair na tentação de “psicologizar” ou de “patologizar” os seus adeptos. Em outras palavras, os ultrarradicais não são simplesmente “loucos”, assim como também não são os seus líderes.

A alt-right deve ser encarada como um acontecimento sociopolítico que mobiliza crenças morais, preconceitos de diversos matizes e interesses políticos e econômicos que refletem o esgotamento das opções políticas mais tradicionais.

O historiador Pablo Stefanoni: autor aborda o tema das novas direitas radicais pelo viés da sua capacidade de mobilização do descontentamento e das frustrações dos ‘esquecidos pela globalização’. Divulgação / Reprodução , CC BY

A crescente indistinção das agendas políticas, econômicas e sociais entre centro-esquerda e centro-direita a partir dos anos 1990, combinadas com o descrédito – na maioria das vezes infundados – das teorias e perspectivas socialistas após o final do “socialismo real”, deixaram como rastro um imenso fatalismo: não haveria alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.

Mas o capitalismo, como analisaram Marx e Engels, é um forte e eficiente produtor de riquezas, mas também de concentração de renda/desigualdade social. Ele se comporta como um animal voraz e mutante que, para não perecer, está sempre em busca de mais acumulação, de maior concentração de recursos e de riqueza. Nesse percurso, novos perdedores sempre aparecem, às vezes entre aqueles que já foram, em algum momento, parte do bando vencedor.

A produção incessante de “losers” pelo capitalismo tem provocado uma nova onda de inconformismo que, como bem salienta Stefanoni e a literatura com a qual ele debate, não foi mobilizada ou atraída pelas esquerdas. A hegemonia social-democrata passou a ser vista por muitos como uma “ditadura do politicamente correto” que supostamente imporia estilos de vida considerados imorais, desagregadores e funestos.

A alt-right na Argentina

O alt-right se considera um “freedom fighter”, um paladino da liberdade, um vingador contra a opressão de grupos sociais moralmente degenerados e que conduzem a economia de modo a enriquecer privando-o de seus privilégios reais ou imaginários. Ele tem orgulho de se confessar “conservador nos costumes” e “liberal na economia”, evocando Margareth Thatcher e Ronald Reagan como líderes-modelo. Ele quer reverter as conquistas dos movimentos sociais e das populações historicamente sujeitadas. É negacionista em quase tudo, desde a eficácia das vacinas até a existência do aquecimento global.

Javier Milei é o representante da alt-right na Argentina; este país pauperizado e desesperançado após décadas de decadência econômica e de piora geral nas condições de vida. Seu discurso econômico é vigoroso e confuso e, por vezes, aparentemente sofisticado, deixando a sensação de alta capacidade intelectual combinada com ímpeto para a ação. Sua performance é histriônica, irritante, debochada e ofensiva. Milei confronta diretamente o politicamente correto, provocando-o com todo o tipo de agressões e falta de compostura. Essa atitude é interpretada como “autêntica”, “corajosa” e “independente”; qualidades que os eleitores de Bolsonaro também atribuem ao seu “mito”.

Na Argentina de Milei, jovens sem expectativa de um bom emprego e pessoas mais experientes que perderam bons empregos não veem mal algum em “experimentar” algo novo já que, desde a redemocratização do país, em 1984, os governos foram todos peronistas – nas suas versões neoliberal (Menem) ou de centro-esquerda (o kircherismo) – e centralistas da União Cívica Radical (Alfonsín e De la Rúa), com um interregno de Macri, neoliberal travestido de empresário bem-sucedido e que, agora, depois do fracasso retumbante de sua candidata – Patricia Bullrich – endossou a candidatura de Milei.

A esquerda e a extrema esquerda argentinas fragmentaram-se em grupos e grupelhos, alguns proclamando a necessidade de boicotar as “eleições burguesas” e outros aliando-se ao peronismo kirchenerista como forma de salvação nacional. A candidatura da Frente de Esquerda, encabeçada por Myriam Bergman, não passou dos 2,7% dos votos no primeiro turno. De todo modo, como analisa certeiramente Stefanoni, a ascensão das novas ultradireitas reativou algo que as esquerdas não parecem mais estimular: a crença em utopias e numa transformação para além do que está consolidado no presente.

Fenômeno sem prazo para terminar

A ascensão da alt-right mostrou que a revolta contra o “sistema” segue sendo uma energia pulsante. O desesperador para o progressista, no entanto, é constatar que tal rebelião com elementos utópicos se dá “desde a direita”. A ultradireita radical também luta, deseja e crê num “mundo melhor”. Diferentemente das esquerdas, o mundo melhor ultradireitista seria uma combinação de uma volta ao passado com roupagem futurista: a continuação da discriminação de negros, indígenas, mulheres, pessoas trans, dissidentes políticos, defensores do meio-ambiente, pacifistas etc. impulsionadas por alta tecnologia.

Como afirma Stefanoni, o mundo das alt-rights é alimentado de “utopias neorreacionárias” alimentadas por anarco-capitalistas como Javier Milei que projetam um mundo no qual as empresas circulam livremente e as pessoas competem entre si pelos melhores empregos, sem nenhuma interferência moderadora ou compensatória do poder público. Diante da falta de radicalidade das esquerdas, a ultradireita ocupou espaços e transformou estéticas e práticas do campo da rebeldia de esquerda em signos ressignificados pelo outro lado do espectro político-ideológico.

A vitória de Milei por mais de 10% de margem sobre Sergio Massa no segundo turno realizado ontem consolida esta noção de “libertarismo” que já não iria desaparecer nem mesmo se o resultado na Argentina fosse outro. Assim como o bolsonarismo não esvaneceu apesar de Jair Bolsonaro estar inelegível e com risco real de ser preso num futuro próximo. As causas profundas que explicam o sucesso eleitoral e o fenômeno histórico-político das ultradireitas seguem ativas porque são enraizadas tanto em antigos e cristalizados preconceitos e valores morais, quanto impulsionadas pela própria dinâmica do capitalismo global que não cessa de produzir excluídos, ao mesmo tempo em que dilui as forças políticas tradicionais de direita e de esquerda em um amorfo “centrão”.

Esta é má notícia. A boa é que o impulso de rebeldia segue vivo entre os seres humanos. O inconformismo segue ativo e, para estar insatisfeito/a é preciso não ser indiferente ao mundo. Gramsci dizia que odiava os indiferentes, pois eles permitem que a história seja feita à sua revelia. A alt-right não é passiva ou indiferente. Ela ocupa ruidosamente espaços políticos e culturais. Será ela o que restou da rebeldia?

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