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Um viajante coloca sua cabeça sobre a borda do firmamento na impressão original (1888) de uma xilogravura do astrônomo francês Camille Flammarion (1842-1925): com sua nitidez e campo de visão, o telescópio espacial Euclid vai permitir mapear a evolução da distribuição de matéria no Universo. Reprodução, CC BY

Telescópio espacial Euclid: cientista conta a saga para entender a natureza da matéria e da energia escura

Em 1º de julho de 2023, o Euclid, um telescópio espacial europeu, foi lançado da base de Cabo Canaveral, EUA. O lançamento foi, sem dúvida, o ponto alto da minha carreira como astrônomo, mas testemunhar o resultado de anos de trabalho sendo colocado em um foguete não é para os de coração fraco. Após um lançamento perfeito, o Euclid chegou rapidamente à órbita planejada, a cerca de 1,5 milhão de km da Terra. A partir desse ponto de observação distante, ele começou a enviar imagens nítidas que cobrirão quase um terço do céu até o final desta década.

O Euclid é o próximo grande passo em nossa saga para tentar entender o Universo. No último século, fizemos um tremendo progresso. Aprendemos que a fusão de hidrogênio em hélio alimenta estrelas como o nosso Sol, enquanto a maioria dos átomos em nossos corpos foi forjada nos núcleos de estrelas que explodiram. Descobrimos que a Via Láctea é apenas uma das muitas galáxias que formam enormes estruturas semelhantes a espuma que permeiam o Cosmos. Sabemos agora que o Universo começou há cerca de 13,6 bilhões de anos com um “Big Bang” e vem se expandindo desde então.

Uma imagem de telescópio espacial Euclid observando o Universo. ESA/Euclid Consortium/NASA, processamento de imagem por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi

Sondando a caixa-preta do Universo

Essas são conquistas importantes, mas à medida que aprendemos mais, também ficou claro que há muito que não entendemos. Por exemplo, acredita-se que a maior parte da massa do Universo seja formada por “matéria escura”, uma forma de matéria que não é explicada pelo modelo padrão da física de partículas, que, de outra maneira, seria muito bem-sucedido.

A atração gravitacional de toda essa matéria deveria freiar a expansão do Universo, mas há cerca de 25 anos descobrimos que, na verdade, ela está acelerando. Isso requer um componente ainda mais misterioso. Para refletir nossa ignorância - até o momento, não existe nenhuma boa explicação física - nós nos referimos a este componente como “energia escura”. Combinadas, a matéria escura e a energia escura constituem 95% do Universo, mas não entendemos sua natureza.

Um feliz Henk Hoekstra no dia do lançamento do Euclid, em 1º de julho de 2023, em Cabo Canaveral, Flórida. Author, Fourni par l'auteur

O que sabemos de fato é que ambos os componentes “escuros” influenciam a formação de grandes estruturas no Universo. A gravidade da matéria escura ajuda a reunir a matéria em galáxias ou objetos ainda maiores. Por outro lado, a energia escura afasta as coisas, contrariando, assim, a atração gravitacional. O equilíbrio entre as duas evolui à medida que o Universo se expande, com a energia escura se tornando cada vez mais dominante.

Os detalhes dependem da natureza dos componentes escuros, e a comparação de observações nos permite distinguir entre diferentes teorias. Esse é o principal motivo pelo qual o Euclid foi lançado. Ele mapeará como a matéria está distribuída no Universo e como isso evoluiu ao longo do tempo. Essas medições podem fornecer a orientação tão necessária que levará a uma melhor compreensão do lado escuro do Universo.

Mas como podemos estudar a distribuição da matéria, se a maior parte dela é matéria escura invisível? Felizmente, a natureza forneceu uma maneira conveniente de fazer isso: a Teoria da Relatividade Geral de Einstein nos diz que a matéria curva o espaço ao seu redor. Assim, os aglomerados de matéria escura revelam sua presença distorcendo as formas de galáxias mais distantes, assim como as ondas na superfície de uma piscina distorcem o padrão dos azulejos no fundo.

Figura 1: Imagem do Euclid do aglomerado de galáxias de Perseus. As galáxias grandes e amarelas fazem parte desse aglomerado maciço de matéria, mas podemos discernir outras 50 mil galáxias mais distantes. ESA/Euclid Consortium/NASA, processamento de imagem por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, Fourni par l'auteur
Figura 1: Se aumentarmos o zoom (à direita), poderemos ver cada galáxia com um nível incrível de detalhes. Graças ao grande campo de visão do Euclid, podemos observar pela primeira vez estruturas tão grandes com uma qualidade tão alta. ESA/Euclid Consortium/NASA, processamento de imagem por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, Fourni par l'auteur

Lentes gravitacionais

Dada a semelhança com as lentes óticas comuns - a física é diferente, mas a matemática é a mesma -, a curvatura dos raios de luz provocada pela matéria é chamada de “lente gravitacional”. Em casos raros, esta curvatura é tão forte que várias imagens de uma mesma galáxia podem ser observadas. Na maioria das vezes, no entanto, o efeito é mais sutil, alterando ligeiramente as formas de galáxias distantes. No entanto, se fizermos a média das medições de um grande número de galáxias, poderemos descobrir padrões em suas orientações que foram impressos pela distribuição de matéria no caminho até nós, tanto regular quanto escura.

Esse sinal de “lente fraca” pode não ser tão espetacular, mas nos fornece uma maneira direta de mapear a distribuição de matéria no Universo, especialmente quando combinado com as distâncias das galáxias para as quais as distorções foram medidas. O potencial dessa técnica foi reconhecido no início dos anos 1990, mas também ficou claro que fazer estas medições seriam um desafio. A turbulência na atmosfera embaça nossa visão das galáxias distantes que queremos usar, enquanto imperfeições na ótica do telescópio inevitavelmente alteram as formas observadas destas galáxias. Por isso, a comunidade astronômica estava cética quanto à viabilidade técnica do projeto. Essa era a situação quando iniciei meu doutorado em 1995, quando embarquei em uma jornada para provar que meus colegas estavam errados.

Uma ilustração de lentes gravitacionais fortes (esquerda) e de como as lentes gravitacionais fracas distorcem as formas observadas de um campo de galáxias (centro) se houver matéria em primeiro plano perto da linha de visão (direita): a presença de matéria entre as galáxias no fundo da imagem e nós causa uma distorção coerente em sua forma e orientação. Se realizada em uma grande parte do céu, essa medição da distorção traz informações valiosas sobre a distribuição de matéria ao longo do tempo cósmico. ESA/Euclid Consortium/NASA, processamento de imagem por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi

Ao longo dos anos, usando conjuntos de dados cada vez maiores coletados com telescópios terrestres, descobrimos e resolvemos novos problemas. Com base em observações do Telescópio Espacial Hubble, lançado em 1990, meu trabalho de tese já havia demonstrado que medir parcialmente as formas é muito mais fácil no espaço.

No entanto, até a chegada do Euclid, os telescópios espaciais só podiam observar pequenas áreas do céu: o Telescópio Espacial James Webb (JWST), lançado em 2021, vê o equivalente a um grão de areia à distância de um braço. Para realmente testar a natureza da energia escura, precisamos cobrir uma área 6 milhões de vezes maior. Foi isso que levou ao Euclid, um telescópio único, projetado para fornecer imagens nítidas de 1,5 bilhão de galáxias, bem como informações sobre a distância até elas. Como mostra a figura 2, em uma única foto observamos uma área maior do que a Lua cheia.

Esses dados são complementados por medições precisas das distâncias de cerca de 25 milhões de galáxias para mapear a distribuição de galáxias em grande detalhe.

Coordenador de cosmologia

Quando iniciei minha jornada nesse campo de pesquisa, a energia escura ainda não havia sido descoberta, e poucos acreditavam que as lentes gravitacionais fracas seriam uma ferramenta importante para estudar a distribuição da matéria no Universo. Como as coisas mudaram.

O lançamento do Euclid é, sem dúvida, a demonstração mais espetacular disso. Desde 2011, quando o projeto ainda estava sendo considerado pela Agência Espacial Europeia (ESA) como parte de seu programa Cosmic Vision, sou um dos coordenadores de cosmologia do Euclid. Isso significa que fui responsável por estabelecer as principais características da missão, em particular aquelas relacionadas à lente gravitacional fraca. Isso incluiu a especificação da nitidez das imagens e a precisão com que precisamos medir as formas das galáxias. O trabalho também envolveu interações frequentes com a Agência Espacial Europeia para esclarecer os objetivos científicos e descobrir como lidar com novas percepções.

Figura 2: Esta imagem mostra o campo de visão do telescópio espacial Euclid em relação ao tamanho da Lua cheia. Uma única exposição cobrfe uma área cerca de 100 vezes maior do que a do Telescópio Espacial Hubble, enquanto sua nitidez é quase a mesma. ESA/Euclid Consortium/NASA, processamento de imagem por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, Fourni par l'auteur

Graças ao trabalho árduo de uma grande equipe de engenheiros e cientistas, conseguimos superar diversos obstáculos técnicos. Continuamos nossa colaboração durante a pandemia, mas perdemos o foguete que pretendíamos usar por causa da invasão russa na Ucrânia - o Euclid estava planejado para ser lançado em um foguete Soyuz. Notavelmente, a ESA encontrou rapidamente uma solução: o lançamento em um foguete Falcon 9 da SpaceX. Como resultado, eu me vi na Flórida para testemunhar o que foi, sem dúvida, o ponto culminante de toda a minha pesquisa até agora.

A pista de obstáculos do Euclid

Desde então, tem sido um passeio de montanha-russa. As primeiras imagens captadas em julho foram mais ruidosas do que o previsto, devido à luz solar que se infiltrou na câmera. Isso teria sido um problema sério, mas o culpado mais provável - um propulsor protuberante que refletia a luz do Sol na parte de trás do protetor solar - foi rapidamente identificado, assim como a solução. Ao girar a espaçonave levemente, o propulsor poderia ser colocado na sombra do satélite. Isso, no entanto, significou uma revisão completa do planejamento da pesquisa.

Os problemas não pararam por aí. A radiação do Sol empurra continuamente o Euclid, o que é compensado com o uso de propulsores que mantêm o telescópio estável. Somente assim podemos capturar as imagens nítidas de que precisamos. No entanto, as partículas energéticas do Sol interferiam no sistema de estabilização, fazendo com que o telescópio tremesse um pouco. Isso foi resolvido com uma atualização de software. Mais recentemente, o acúmulo de gelo no interior do telescópio causou preocupação, mas esse problema também foi resolvido com sucesso.

Figura 3: Imagem do Euclid de IC 342, uma galáxia espiral próxima ao plano da Via Láctea. As observações do Euclid em comprimentos de onda no infravermelho próximo revelam muitos detalhes dessa galáxia. ESA, Fourni par l'auteur

Para dar ao mundo uma noção de seu potencial, algumas “observações de divulgação antecipada” de objetos cósmicos “fotogênicos” foram divulgadas em novembro. A que mais se aproxima da minha pesquisa é a do aglomerado de galáxias Perseus (Figura 1). Além das grandes galáxias amareladas, que fazem parte desse enorme aglomerado de matéria, o Euclid fornece imagens detalhadas de outras 50 mil galáxias. Esse nível de detalhe é o que eu preciso para minha pesquisa, mas até agora só tenho 800 de 25 mil dessas imagens!

E isso já começou: em 15 de fevereiro de 2024, o Euclid iniciou seu levantamento principal e, nos próximos 2.200 dias, continuará fotografando o céu. Essa grande quantidade de dados será um tesouro para os astrônomos - e para o mundo todo - nos próximos anos. Por exemplo, podemos estudar em detalhes a estrutura de centenas de galáxias próximas, como a IC 342 (Figura 3). Essas imagens são apenas uma amostra do que o futuro trará.


Este artigo é resultado da colaboração do The Conversation com a Horizon, revista de pesquisa e inovação da União Europeia. Em dezembro, os autores publicaram uma entrevista com a revista.

This article was originally published in English

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