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A era das pandemias não acaba com a Covid-19. Estamos na fase interpandêmica

Para muitas pessoas, a pandemia de COVID-19 pode ter parecido um evento imprevisível, que pegou o mundo de surpresa no início de 2020. Mas isso é um erro. Ao longo dos 20 anos que antecederam a pandemia de COVID-19, diversos estudos já alertavam para o aumento da ocorrência de novos surtos de doenças contagiosas com potencial para desencadear uma pandemia.

Publicações científicas, documentos governamentais e intergovernamentais e até mesmo textos jornalísticos também chamavam a atenção para a falta de políticas públicas, em nível nacional e global, para promover medidas de mitigação da pandemia, ou seja, reduzir os riscos de novas pandemias, semelhante às medidas de mitigação para conter o aquecimento global.

Convencidos de que esses estudos mereciam mais atenção, tanto na comunidade científica quanto entre legisladores, decidimos divulgar em 2022 um levantamento com referências a 100 estudos sobre ameaças pandêmicas publicados entre 1999 e 2019. Um estudo de 2014, por exemplo, estimou o custo econômico global de uma pandemia comparado aos custos que seriam necessários para impedir, ou para pelo menos reduzir as chances de que uma pandemia viesse a ocorrer. Não por acaso, como mostra o estudo, os custos para se combater uma pandemia que de fato já eclodiu são muito mais elevados do que os custos para tentar evitar que uma nova venha a ocorrer.

Se levarmos em consideração os custos humanos, que não podem ser medidos ou compensados em termos econômicos, fica ainda mais evidente que ações para reduzir o risco de uma pandemia são uma obrigação ética da comunidade científica e dos governos nacionais e internacionais. Só no Brasil, 700 mil pessoas morreram por COVID-19 entre fevereiro de 2020 e março de 2023.

A pandemia de COVID-19 é agora um tema muito estudado na academia em diversas áreas. Diante de tantas publicações, haveria então ainda boas razões para examinarmos o que se publicou sobre pandemias antes de 2020? Nós acreditamos que sim.

Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha declarado o fim da COVID-19 como uma emergência de saúde pública, em cinco de maio de 2023, as condições para o surgimento de novas pandemias não foram eliminadas. Pelo contrário, é possível que a situação seja pior agora.

Pandemias não são fenômenos naturais como terremotos, tsunamis, ou tempestades magnéticas. Assim como as mudanças climáticas, elas têm causas antropogênicas, isto é, que decorrem de atividades humanas como, por exemplo, desmatamentos e fragmentação de florestas, e da criação de grandes populações animais mantidas em confinamento, o que aproxima o contato entre seres humanos e animais portadores de vírus com potencial para desencadear uma pandemia.

As viagens cada vez mais frequentes entre os diferentes continentes, somadas à grande concentração de pessoas em áreas urbanas, permitem que os vírus se espalhem mais rapidamente por todas as partes do mundo. Nada disso mudou após a declaração do fim da COVID-19 como uma emergência de saúde pública.

Para agravar o problema, as mudanças climáticas interferem no comportamento de aves, morcegos e outros animais que podem procurar alimentos ou migrar para áreas urbanas em vez de permanecer em seu habitat de origem. As mudanças climáticas afetam também o comportamento das pessoas.

É provável que populações inteiras, na tentativa de fugir de ondas de calor em regiões mais secas, migrem para os grandes centros urbanos em busca de proteção. Cidades densamente povoadas são um ambiente ideal para o contágio e proliferação de doenças infectocontagiosas que podem se espalhar por todo o mundo.

E como se isso não bastasse, a ameaça de uma pandemia também é agravada pela emergência e rápido desenvolvimento de tecnologias para modificação de genes de um organismo. Estas poderiam ser utilizadas para a recriação de vírus considerados extintos, ou para permitir “ganho de função”, o que pode fazer com que eles tenham maior capacidade de contaminação e letalidade entre seres humanos. Muitos dos estudos que levantamos em nossa pesquisa dizem respeito à ameaça de pandemias decorrentes de ações bioterroristas.

Também é importante destacar que, dentre os estudos sobre ameaças pandêmicas publicados antes da pandemia de COVID-19, chamam atenção os vários documentos da OMS. Há vários anos a entidade já alertava para um gradual aumento do número de novas doenças infectocontagiosas com potencial para desencadear uma pandemia e para a frequência com que novas epidemias e pandemias vêm ocorrendo. Após uma nova epidemia ou pandemia, como a OMS enfatiza em alguns documentos, o que vem não é um período pós-pandêmico, mas uma nova “fase interpandêmica”.

A imagem mostra um gráfico que ilustra a continuidade das fases pandêmicas, que vai da fase interpandêmica para a pandemia e para a fase interpandêmica novamente.
A continuidade das fases pandêmicas. WHO, CC BY-NC-SA

Na fase interpandêmica, cabe aos governos e à sociedade civil não apenas se recuperar da pandemia passada, mas também se preparar para a próxima. Certamente haverá outras pandemias, mas para a população e para os legisladores parece mais confortável, e mais estratégico para fins eleitorais, tratar apenas de se recuperar do nosso passado recente, sem se preocupar com o que ainda virá pela frente. Diversos pesquisadores, antes da pandemia de COVID-19, já falavam de uma “era pandêmica”, que não se encerrará com a COVID-19.

Para planejadores de políticas públicas na área da saúde, os estudos publicados antes da pandemia de COVID-19 continuam não apenas válidos, mas podem também constituir parte da estratégia de comunicação sobre a importância de investimentos na área de proteção ambiental, pesquisas científicas na área de saúde e biotecnologias e, sobretudo, para a promoção de medidas de mitigação pandêmica e mitigação climática nas próximas décadas. Para o público, por outro lado, esses estudos podem também se tornar uma ferramenta para exigir do poder público a implementação de políticas de mitigação pandêmica, de modo a evitar os erros e omissões de políticas passadas.

Não ser negacionista, quando se trata de pandemias, não significa mais simplesmente entender que cloroquina não é o tratamento adequado para COVID-19, ou que vacinas são eficazes e imprescindíveis para a proteção da população. Não ser negacionista significa também reconhecer a relevância de pesquisas científicas que já vinham sendo feitas antes da pandemia de COVID-19, mas às quais não foram dadas até agora a devida atenção. Esses estudos continuam não apenas atuais, mas representam hoje um monumento à relevância da pesquisa científica para a prevenção e solução de crises globais.

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