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Criança indígena sendo vacinada no Hospital das Clínicas, em São Paulo: Se somarmos todas as mortes de crianças por gripe, pneumonia, meningite, coqueluche, difteria, tétano, hepatite, catapora, sarampo, rubéola que tivemos no Brasil de 20 a 22, a COVID-19 matou mais. AP Photo/Andre Penner

Análise: Brasil tem razões de sobra para incluir vacina pediátrica da COVID-19 no Programa Nacional de Imunizações

No mundo inteiro - e especialmente no Brasil - a história das vacinas é uma história de sucesso. Ao evitar mortes e erradicar ou fazer praticamente desaparecerem várias doenças, como varíola, pólio e sarampo, elas tornaram os vírus e bactérias que as provocam literalmente invisíveis para a população. Assim, talvez o grande desafio da imunização hoje seja continuar motivando as pessoas a se vacinarem quando elas não se sentem mais ameaçadas por estas doenças.

O medo é um grande fator de busca por proteção do ser humano e, a partir do momento que você controla uma doença, você tira esta ameaça de perto. Aí vêm os questionamentos. E isso não só na população em geral, mas entre os próprios profissionais da saúde. Temos toda uma nova geração de profissionais que não conviveram, viram ou trataram essas doenças. Com isso, estes profissionais acabam também recomendando a prevenção de maneira menos enfática, ou cobram dos pais a carteira de vacinação das crianças de maneira menos vigorosa. Tudo isso contribui para que as coberturas vacinais estejam cada vez mais baixas de uma maneira geral no país.

Mas temos outros fatores contribuindo para as coberturas vacinais inadequadas. Temos muitas vacinas no calendário, o que exige visitas mensais dos pais com os filhos aos postos de saúde logo no primeiro ano de vida.

Acontece que hoje a mulher muitas vezes é o arrimo da família. Se antes elas eram donas de casa e podiam levar os filhos para vacinar a qualquer hora, agora elas não encontram horários disponíveis nos postos de saúde, que ainda funcionam em horários reduzidos, quando em geral elas estão no trabalho. Além disso, muitas vacinas vêm em frascos multidoses, que só são abertos às vezes, geralmente só um dia na semana. Então, não é raro as famílias acabarem perdendo a viagem.

Outra questão é que o Brasil é um país muito heterogêneo, o que também afeta a cobertura vacinal. O que faz uma família não vacinar suas crianças numa grande metrópole como Rio de Janeiro ou São Paulo certamente não é o mesmo motivo que faz a criança perder uma vacina no Sertão do Nordeste, na região ribeirinha da Amazônia ou nos Pampas gaúchos. São particularidades de um país tão diverso como o nosso que precisam ser encaradas com as ações devidas, específicas para cada região.

Campo fértil para negacionismo

Neste cenário, temos um campo fértil para o antivacinismo prosperar com a atuação dos vendedores de ilusão, dos oportunistas de plantão. O movimento antivacina nasceu no exterior, em países como os EUA e o Reino Unido, e aqui no Brasil nos julgávamos imunes a ele. Mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) já cantava essa bola em 2014, dizendo que um dos dez maiores problemas da década na saúde pública global seria a hesitação vacinal.

Mas o movimento antivacina chegou no Brasil. E ele cresceu justamente na esteira da pandemia de COVID-19. As novas tecnologias em vacinas que ajudaram a combater a pandemia, como as de RNA mensageiro (mRNA), serviram de ingrediente para que estes grupos prosperassem, atuando com interesses comerciais e políticos.

Questões financeiras e de poder estão por trás desse movimento, e na COVID-19 ele está prejudicando em especial a vacinação de crianças. Além das falsas notícias, temos outras duas questões importantes aí.

Uma delas é o equívoco que foi transmitido por todos nós - inclusive, aqui faço uma mea culpa - de que a COVID-19 não acometia crianças tão gravemente quanto idosos. Embora seja fato que o risco de agravamento do idoso é desproporcionalmente maior, talvez não fosse esta a comparação mais justa que deveríamos ter feito.

Desde o início, deveríamos ter comparado a COVID-19 na pediatria com as demais doenças pediátricas. Neste caso, o cenário para as crianças é um assombro. A COVID-19 sozinha fez mais vítimas em três anos de pandemia do que todas as doenças preveníveis com vacinas do calendário infantil juntas. Se somarmos todas as mortes de crianças por gripe, pneumonia, meningite, coqueluche, difteria, tétano, hepatite, catapora, sarampo, rubéola que estivemos no Brasil de 2020 a 2022, a COVID-19, infelizmente, matou mais.

Isso sem falar, obviamente, na Covid longa e outras complicações inflamatórias que estão levando à hospitalização. Não é normal hospitalizarmos crianças, não é normal vermos nossos filhos entubados em terapia intensiva. Vacinas não são administradas somente para prevenir mortes, mas também para prevenir dor, sofrimento, sequelas. Fizemos mal a comunicação dos riscos da COVID-19 para as crianças que ficou muito no imaginário da população.

Um terceiro ingrediente que piora ainda situação da adesão, é que a vacina pediátrica da Covid só chegou quando a percepção de risco da doença já era muito menor. A COVID-19 já estava mais controlada, não fazia mais aquelas quase 5 mil mortes por dia que a gente teve. Com os números muito menores e uma sensação de relaxamento, os adultos não vacinaram as crianças, e também deixaram de se vacinar.

Assim, hoje a gente tem os menores de um ano de idade empatando com os maiores de 80 anos como as populações com maior risco de hospitalização por COVID-19. O resto da população hoje não hospitaliza tanto porque já recebeu três, quatro doses de vacina, e mesmo os jovens adultos e adolescentes já têm duas, três doses.

Todas essas pessoas ficaram praticamente imunes ao vírus graças a uma imunidade híbrida construída em função da vacinação e da exposição ao vírus. Mas as crianças que nasceram nos últimos dois, três anos não têm nem uma coisa, nem outra. Não têm nenhuma imunidade por exposição ao vírus e também não estão recebendo vacinas, cujas coberturas estão muito baixas para esta faixa etária. Não é à toa que estas crianças mais novas são a parte da população hoje com as maiores taxas de incidência para formas mais graves de COVID-19, junto com os idosos que, a despeito de terem quatro, cinco doses de vacina e três, quatro infecções, continuam vulneráveis pelo envelhecimento do seu sistema imune.

Pais protegidos, filhos vulneráveis

Então, temos um dado importante. A COVID-19 ainda é uma doença com grande carga na população pediátrica e, por isso, foi fundamental a incorporação de sua vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Essa incorporação no calendário de vacinação infantil não foi baseada em achismos. Foi baseada nesses dados epidemiológicos. Aqui no Brasil temos razões de sobra para incluir a vacina no PNI.

Aí chegamos a outra questão que colocou mais combustível na retórica dos grupos antivacina. Com a inclusão da vacina pediátrica da COVID-19 no PNI, ela passa a ser “obrigatória”, como a da como pólio, do sarampo, como todas as outras. Está ali no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É um direito das crianças ficarem protegidas. Os pais não podem negar a vacina da mesma forma que não podem negar educação, saúde e alimentação para os seus filhos. É um direito que as crianças têm por si, são titulares destes direitos. Os filhos não são propriedade dos pais, segundo a Constituição Brasileira.

Os grupos antivacina, porém, acharam nisso motivo para colocar na cabeça da população que seus filhos vão ser obrigados a se vacinar, como se alguém fosse resgatar a criança dentro de sua casa, tirar à força de seus pais e vacinar. Não fazemos isso com nenhuma vacina, e tampouco faremos com a da COVID-19. A obrigatoriedade é um valor simbólico que mostra para a sociedade e para os governos a importância da vacinação. Ninguém vai deixar de ser matriculado numa escola ou vacinado à força porque não tem uma carteira de vacinação em dia. Mas esta é uma ferramenta para orientar, esclarecer e dizer que a família precisa vacinar seus filhos.

Apesar disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM), alimentando a onda negacionista, recentemente resolveu fazer um dita pesquisa sobre a opinião dos médicos brasileiros acerca de inclusão da vacina pediátrica da COVID-19 no PNI. “Pesquisa” modo de dizer, pois não dá nem para chamar de pesquisa uma enquete com quatro perguntas tendenciosas e aberta para todos médicos do país, inclusive não especialistas.

Sob o disfarce da autonomia do médico, o CFM na verdade está contribuindo para espalhar desinformação na classe médica, que não é imune a ela. Este é outro grande desafio dessa infodemia, essa epidemia de desinformação que acaba atingindo a todos, e que quando vem de um profissional da saúde é ainda mais difícil de combater.

A desconfiança e a perda da confiança na população nas vacinas, de uma forma geral, e na da COVID-19 em particular, está fazendo com que, pela primeira vez, temos pais protegidos não protegendo seus filhos. É curioso. Os pais têm três, quatro, cinco doses de vacina contra a COVID-19 enquanto seus filhos não têm nenhuma.

Não é que estes pais queiram o mal de seus filhos, claro. Mas eles estão impactados com tanta desinformação sobre vacinas que a despeito da recomendação do Ministério da Saúde, das recomendações da Sociedade Brasileira de Pediatria e de todos os órgãos competentes ao fazer e endossar essas recomendações, ainda estão temerosos e, infelizmente, não têm vacinado seus filhos. A esperança é que isso mude com a entrada da vacina pediátrica da COVID-19 no PNI.

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