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Na visão de Lúcia Santaella, a inteligência artificial é tão humana quanto o ser humano é tecnológico - e essa verdade histórica não pode ser ignorada, sob pena de perdermos o controle sobre a nossa própria evolução.

Análise: inteligência artificial e inteligência natural fazem parte de um mesmo todo chamado Humanidade

Devido ao grande interesse que tenho nutrido pelas ciências cognitivas há muitos anos, venho acompanhando os altos e baixos do desenvolvimento da inteligência artificial até o sucesso recente que ela alcançou, graças não só ao aumento da escalabilidade (ou seja, da potência dos computadores), mas também às redes neurais artificiais e ao agigantamento dos dados com que os algoritmos são treinados.

Hoje, a afirmação de que o humano é tecnológico por sua própria natureza deveria ter se tornado indiscutível, pois, na verdade, a tecnologia parece ser a força dominante na nossa economia, política e cultura, para não mencionar a obsessão diária do uso ininterrupto de smartphones, que parece, à primeira vista, ter se transformado em um vício pessoal, o que, de fato, não é.

Todavia, mesmo diante da evidência irrefutável de que estamos lidando com tecnologias da inteligência, ainda continua existindo uma visão separatista da tecnologia, como se ela se constituísse como uma realidade apartada do humano ou, quando muito, considerada como mera ferramenta (uma espécie de martelo mental) para o trato de finalidades humanas.

Curioso observar que quanto mais a tecnologia se impregna em nosso sistema nervoso central, tanto mais ela é considerada como estranha e forasteira. Um paradoxo que produz como consequência uma dissociação cognitiva irremediável.

A consequência mais nefasta que tem brotado da visão separatista do humano em relação à tecnologia, em especial às tecnologias cognitivas e inteligentes, é um recrudescimento dos valores humanos plantados pelo Iluminismo, o que não passa de uma busca de afirmação anacrônica de um perfil do humano que não existe mais e ao qual a humanidade se aferra para salvaguardar seu falso antropocentrismo.

Tecnologia é tão humana quanto o ser humano é tecnológico

Infelizmente, com o advento da Inteligência Artificial, estamos assistindo a um revigoramento de velhos e cínicos valores iluministas tidos como o suprassumo do humano. A filosofia do século XX demoliu esses valores, mas poucos leem filosofia, pois isso exige trabalho mental e leva tempo.

Defendo a tese, que está minuciosa e escrupulosamente defendida no livro Neo Humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens, de que, para vislumbrarmos as condições em que hoje estamos, é preciso recuar no tempo. Não para ontem ou antes de ontem, mas sim para seguir o desenho de um longo arco-íris antropo histórico secular.

Assim, retomando o tema: não apenas toda tecnologia é humana quanto também o humano é tecnológico de saída. O humano é o único animal da biosfera que fala. Falamos porque temos instalado em nosso corpo um aparelho, o aparelho fonador, que não tem nada de natural. Temos um artifício dentro do nosso próprio corpo. Somos naturais e artificiais ao mesmo tempo, um tipo de hibridismo que é contraditório e que só tem crescido e se expandido ao longo dos séculos.

Isso começou na oralidade das sociedades míticas, mas rapidamente externalizou-se nas diferentes formas de escrita. Assim, da escrita, passamos para a revolução de Gutenberg, desta para a revolução industrial, com suas primeiras máquinas mediadoras, tais como a fotografia, o telégrafo, ou seja, uma revolução das linguagens, da memória e da inteligência extensivas que levou à explosão do jornal.

Então, veio o cinema, a primeira arte industrial de massa, seguido pela onipresença da publicidade e a revolução eletroeletrônica dos meios de difusão, rádio e TV até chegarmos à grande explosão sociotécnica da revolução digital. Conforme já tratei em outra ocasião à luz de McLuhan, toda grande revolução cultural muta-se em implosão, ou seja, na mudança de escala, cadência e padrão que um meio tecnológico produz nas coisas humanas.

São muitas as mutações instauradas pela digitalização dos processos comunicativos em todas as suas esferas, com repercussões na produção do conhecimento e certamente com bases na economia e na política. Não obstante o pouco tempo transcorrido, ficam claros os sucessivos giros copernicanos dessas redes, do clímax utópico e eufórico dos seus inícios até o anticlímax disfórico dos derramamentos de fake news e desinformação a que as redes passaram a dar guarida.

Inseparáveis do agigantamento de dados com que as redes são alimentadas, encontram-se a ciência dos dados e a Inteligência Artificial. Há não mais do que dez anos, vivemos no arrebatamento da Inteligência Artificial, cuja onipresença colocou o mundo diante da tarefa complexa e até agora pouco realizada de Regulação da IA, uma tarefa que é tanto mais complexa porque a IA não cessa de se transformar. Tanto isso é verdade que uma nova forma de IA, a IA Generativa tomou o mundo de assalto há alguns meses.

Até 2022, compreender e aplicar as complexas operações da IA, chamada de preditiva, era privilégio dos entendidos especialistas. Embora pudéssemos perceber seus rastros que se mostram nas timelines que escorrem pelas nossas telas, tudo se dava no invisível a ponto de, em algum momento, por volta de 2021, eu ter declarado que era preciso começar a perscrutar o invisível. Hoje, no entanto, a IA generativa no seu rebento, o ChatGPT, conversa conosco, pois ela chegou tão perto do humano a ponto de penetrar naquilo mesmo que nos constitui como humanos: a linguagem.

Diante disso parece tolo negar que toda tecnologia é humana tanto quanto é ainda mais tolo negar que o humano é tecnológico, com todas as suas contradições e ambivalências e, consequentemente, todos os dilemas e desafios que isso nos traz.

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