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Mão robótica toca com os dedos uma mão humana
“A Criação de Adão”, obra-prima de Michelangelo na Capela Cistina, inspira a imagem acima para ilustrar as cada vez mais controvertidas relações entre a humanidade e a Inteligência Artificial. Cottombro Studios / Pexels, CC BY-SA

Análise: “Se inteligência é flexibilidade, então a inteligência artificial não é nada inteligente”

Que ironia que alguns dos companheiros da minha espécie achem que o suprassumo da inteligência humana é criar tecnologia que reproduza e substitua essa inteligência, como um Deus criando humanos à sua imagem. Muito pelo contrário, eu prefiro pensar que o que aprendemos com a inteligência artificial deveria inspirar muito mais humildade em nossos cérebros humanos ditos superpoderosos. Afinal, o que ChatGPT e similares nos ensinaram até agora é que é muito, muito fácil produzir algo que se passa por aquilo que muitos humanos prezam como o mais distintivamente Homo da sua humanidade: a linguagem simbólica.

Falo da capacidade de juntar rabisquinhos em sequências que transmitem algum sentido. ChatGPT e semelhantes são algoritmos treinados do zero, tal qual cérebros humanos novinhos, que constantemente geram sequências de letras (ou sons) por tentativa e erro. Estas sequências são então checadas contra algo que dê algum retorno, seja ele um sorriso ou apenas mais sequências como resposta. Só isso.

Rodando numa máquina ou em um cérebro com unidades suficientes para guardar uma memória do que funcionou (e tempo suficiente de vida para tentar e errar), o algoritmo bobão vai se tornando capaz de gerar sequências cada vez mais próximas das que ocorrem nas bases de dados usadas no treino – sejam elas a fala gerada livremente por humanos ao redor, ou todo o conteúdo fixado na internet até uma certa data.

Tudo o que esse algoritmo gera, seja ele implementado em biologia ou máquina, são combinações novas da base de dados que o alimentou. Humanos assim aprendem a falar a língua que ouvem, qualquer que ela seja. E o ChatGPT assim aprende a construir frases e sequências de frases, chamadas “conversas”, apenas tão eloquentes ou perturbadoras quanto o conteúdo da internet que o treinou.

O algoritmo não sabe o que está aprendendo a fazer, e portanto faz em qualquer língua. Há “informação” em quais sequências de letras têm mais chance de ocorrer junto com outras em cada língua, mas não há qualquer valor ou utilidade nessas sequências e, portanto, não há conhecimento de fato naquilo que o ChatGPT produz. Donde as ditas “alucinações”, as sequências inventadas pelo ChatGPT por livre associação.

Eu protesto. Alucinações seriam sequências que não existem na base de dados, como as imagens geradas por cérebros humanos sem qualquer conexão com a realidade. O que o ChatGPT faz, por excelência, é confabular: criar novas associações entre sequências que já fazem, sim, parte do seu repertório – tal qual humanos amnésicos ao tentar explicar por que colocaram sal no café. “Foi, ahn, uma replicação de um experimento feito com ratos na Universidade Princeton em 2004, isso!”.

E assim o ChatGPT levou a tal da linguagem de suprassumo da Humanidade a algo que requer apenas uma rede capaz de aprendizado não supervisionado; uma base de dados; e muito tempo e energia para rodar, de novo e de novo, até ficar apta a ser utilizada, com resultados nunca garantidos, em ambientes escolares e mais ou menos produtivos. Se o conteúdo gerado é factual ou até transcende informação e vira conhecimento é uma questão dos valores de quem usa – e valores, isso sim, são individuais. Mas se a questão é apenas ter linguagem, então nada exclusivamente humano é necessário. Sorry, Chomski.

Um pequeno robô-aspirador redondo sobre um piso de madeira
Um robô-aspirador Roomba: se fosse de fato inteligente, seu algoritmo já teria se flexibilizado para evitar que ele fique preso. Kārlis Dambrāns/Wikimedia Commons, CC BY

Ser inteligente são outros quinhentos

Agora, se o ChatGPT é inteligente, ou mesmo se a “inteligência artificial” é de fato inteligente, são outros quinhentos. Uma máquina, ou mesmo animal, ser capaz de fazer alguma coisa não é prova de inteligência, apenas de comportamento, ou seja, qualquer ação observável, pela minha definição. Gerar ações é o que o cérebro faz em permanência – inclusive a ação de se manter quieto, de pé ou sentado. Um algoritmo ou engenhoca que indica o caminho, traduz texto ou aspira o chão da casa sem supervisão humana também tem comportamento, que pode ser bastante complexo, e quem sabe até tem memória para oferecer endereços frequentes ou mapear sozinho os limites do chão.

Mas inteligência, pelo meu livro, é flexibilidade comportamental, e inteligente é quem tem comportamento flexível, algo que vai muito além de adaptação ou memória: comportamento que expande possibilidades futuras e age em prol da sua flexibilidade continuada, mantendo portas abertas proativamente. Memória é a capacidade de lembrar e fazer igual da próxima vez. Flexibilidade e, portanto, inteligência é a capacidade de fazer diferente quando a realidade, as circunstâncias, ou vontades e valores, mudam – e sobretudo de fazer acontecer o que se deseja que aconteça.

No caso de animais vertebrados, flexibilidade comportamental é um produto do córtex cerebral, uma rede de neurônios ricamente conectada, capaz de formar e mudar associações conforme suas experiências. E, sobretudo, de modificar as ações geradas dependendo do passado, e dos valores associados desde já a simulações do futuro. Em princípio, quanto mais neurônios essa rede possui, mais flexibilidade ela tem e, portanto, mais inteligente ela é.

E a maior distinção da espécie humana, segundo minha própria pesquisa, é sermos o animal com o maior número de neurônios no córtex cerebral: 16 bilhões, nada menos que o dobro dos segundos colocados, gorilas e orangotangos empatados com uns 8 bilhões.

Chimpanzés têm entre 6 e 7 bilhões de neurônios corticais; elefantes, menos de 6 bilhões; baleias, pelas minhas contas, não mais do que uns 3 ou 4 bilhões; e araras, papagaios e macacos algo entre 1 e 3 bilhões – tantos, aliás, quanto eu estimo que um Tyrannosaurus rex adulto possuía.

O tapado do meu robozinho aspirador de pó vive se prendendo debaixo do mesmo móvel no meu quarto desde que saiu da caixa. Sua navegação da minha casa é um comportamento programado por algoritmos um tanto simples. E ele não é inteligente, ou seu sistema já teria se flexibilizado para evitar que fique preso.

Uma vez que se nota que algoritmo funcional não é garantia de inteligência, a expressão “inteligência artificial” deveria ser reservada a sistemas cognitivos artificiais (quer dizer, não biológicos) que se mostram de fato flexíveis. Ainda assim, eles não terão valores humanos, porque não são humanos. E esta, para mim, é a questão que importa: quão inteligente, pela minha definição, é deixar decisões sobre o nosso futuro na mão de sistemas que não compartilham dos nossos valores?

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