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Mulheres carregando faixas com dizeres feministas se manifestando em uma rua
A “Marcha das Mulheres por Justiça”, que aconteceu em várias cidades australianas em 2021: para criar variedades vigorosas de feminismo daqui para frente é preciso que as gerações emergentes de feministas saibam que não estão vivendo em um momento isolado, com a tarefa de começar de novo. Dave Hunt/AAP

As quatro ondas do feminismo, e o que pode vir a seguir

Nos países ocidentais, a história do feminismo é geralmente apresentada como uma história de “ondas”. A chamada primeira onda durou de meados do século XIX a 1920. Já a segunda onda abrangeu a década de 1960 até o início da década de 1980. A terceira onda começou em meados da década de 1990 e durou até a década de 2010. E, finalmente, alguns dizem que estamos vivenciando uma quarta onda, que começou em meados da década de 2010 e continua até agora.

A primeira pessoa a usar o termo “ondas” no contexto do feminismo foi a jornalista Martha Weinman Lear, em seu artigo de 1968 no New York Times, The Second Feminist Wave (A Segunda Onda Feminista), demonstrando que o movimento de liberação das mulheres era um “novo capítulo em uma grande história de mulheres lutando juntas por seus direitos”. Ela estava respondendo ao enquadramento do movimento pelos antifeministas como uma “bizarra aberração histórica”.

Algumas feministas criticam a utilidade da metáfora. Qual é a posição das feministas que antecederam a primeira onda? Por exemplo, a escritora feminista da Idade Média Christine de Pizan, ou a filósofa Mary Wollstonecraft, autora de A Vindication of the Rights of Woman (Uma Reivindicação dos Direitos das Mulheres), de 1792.

Será que a metáfora de uma única onda ofusca a complexa variedade de preocupações e demandas feministas? E essa linguagem exclui os não ocidentais, para os quais a história das “ondas” não tem sentido?

Apesar dessas preocupações, inúmeras feministas continuam a usar “ondas” para explicar sua posição em relação às gerações anteriores.

Um comício da segunda onda do feminismo no Dia Internacional da Mulher em Melbourne, 1975. National Archives of Australia

A primeira onda: a partir de 1848

A primeira onda do feminismo refere-se à campanha pelo voto. Ela começou nos Estados Unidos em 1848 com a Convenção de Seneca Falls, onde 300 pessoas se reuniram para debater a “Declaração de Sentimentos” de Elizabeth Cady Stanton, descrevendo a condição inferior das mulheres e exigindo o sufrágio - ou seja, o direito de votar.

O movimento continuou mais de uma década depois, em 1866, na Grã-Bretanha, com a apresentação de uma petição de sufrágio ao Parlamento.

Essa onda terminou em 1920, quando foi concedido o direito de voto às mulheres nos EUA. (O sufrágio feminino limitado havia sido introduzido na Grã-Bretanha dois anos antes, em 1918. N.T.: Já as mulheres brasileiras só conquistaram o direito de votar em 1932). Os ativistas da primeira onda acreditavam que, uma vez conquistado o voto, as mulheres poderiam usar seu poder para promulgar outras reformas muito necessárias, relacionadas à propriedade, educação, emprego e muito mais.

Vida Goldstein. Wikipedia

Mulheres brancas dominaram a liderança do movimento. Entre elas estavam a presidente de longa data da International Woman Suffrage Alliance Carrie Chapman Catt nos EUA, a líder da militante do Women’s Social and Political Union Emmeline Pankhurst no Reino Unido e Catherine Helen Spence e Vida Goldstein na Austrália.

Isso tende a obscurecer as histórias de feministas não brancas, como a evangelista e reformadora social Sojourner Truth e a jornalista, ativista e pesquisadora Ida B. Wells, que lutavam em várias frentes, inclusive contra a escravidão e o linchamento, além do feminismo.

A segunda onda: a partir de 1963

A segunda onda coincidiu com a publicação do livro The Feminine Mystique (A Mística Feminina) da feminista norte-americana Betty Friedan em 1963. O “poderoso tratado” de Friedan despertou interesse crítico em questões que vieram a definir o movimento de libertação das mulheres até o início da década de 1980, como igualdade no local de trabalho, controle de natalidade e aborto, e educação das mulheres.

Germaine Greer. Getty Images

As mulheres se reuniram em grupos de “conscientização” para compartilhar suas experiências individuais de opressão. Essas discussões informaram e motivaram a agitação pública pela igualdade de gênero e mudança social. A sexualidade e a violência baseada em gênero foram outras preocupações importantes da segunda onda.

A feminista australiana Germaine Greer escreveu The Female Eunuch (O Eunuco Feminino), publicado em 1970, que exortava as mulheres a “desafiar os laços que as prendem à desigualdade de gênero e à servidão doméstica” - e a ignorar a autoridade masculina repressiva explorando sua sexualidade.

O lobby bem-sucedido levou à criação de refúgios para mulheres e crianças que fugiam da violência doméstica e do estupro. Na Austrália, houve nomeações políticas inovadoras, inclusive a primeira conselheira feminina do mundo em um governo nacional (Elizabeth Reid). Em 1977, uma Comissão Real sobre Relações Humanas examinou as famílias, o gênero e a sexualidade.

Em meio a esses desenvolvimentos, em 1975, Anne Summers publicou Damned Whores and God’s Police (Prostitutas Malditas e a Polícia de Deus), uma crítica histórica contundente sobre o tratamento dado às mulheres na Austrália patriarcal.

Ao mesmo tempo em que faziam avanços, as chamadas “libertadoras das mulheres” conseguiram irritar as feministas anteriores com suas reivindicações distintas de radicalismo. A incansável ativista Ruby Rich, que foi presidente da Federação Australiana de Mulheres Eleitoras de 1945 a 1948, respondeu declarando que a única diferença era que sua geração havia chamado seu movimento de “justiça para as mulheres”, e não de “libertação”.

A autora e crítica cultural Bell Hooks. Karjean Levine/Getty Images

Assim como na primeira onda, o ativismo dominante da segunda onda mostrou-se irrelevante para as mulheres não brancas, que enfrentavam a opressão em bases de gênero e raça que se cruzavam. As feministas afro-americanas produziram seus próprios textos críticos, inclusive o de Bell Hooks Ain’t I a Woman? Black Women and Feminism (Não Sou Uma Mulher? Mulheres Negras e Feminismo) em 1981, e o de Audre Lorde Sister Outsider (Irmã Forasteira) em 1984.

A terceira onda: a partir de 1992

A terceira onda foi iniciada na década de 1990. O termo é popularmente atribuído a Rebecca Walker, filha da escritora e ativista feminista afro-americana Alice Walker (autora de The Color Purple (A Cor Púrpura)).

Aos 22 anos, Rebecca proclamou em um artigo da revista Ms. de 1992: “Não sou uma feminista pós-feminismo. Sou da Terceira Onda”.

As “terceiras ondas” não achavam que a igualdade de gênero havia sido mais ou menos alcançada. Mas compartilhavam a crença das pós-feministas de que as preocupações e demandas de suas antepassadas eram obsoletas. Elas argumentavam que as experiências das mulheres eram agora moldadas por condições políticas, econômicas, tecnológicas e culturais muito diferentes.

A terceira onda foi descrita como “um feminismo individualizado que não pode existir sem diversidade, positividade sexual e interseccionalidade”.

Kimberlé Crenshaw cunhou o termo ‘interseccionalidade’. UCLA

A interseccionalidade, cunhada em 1989 pela acadêmica jurídica afro-americana Kimberlé Crenshaw, reconhece que as pessoas podem sofrer camadas de opressão que se cruzam devido à raça, ao gênero, à sexualidade, à classe, à etnia e muito mais. Crenshaw observa que essa era uma “experiência vivida” antes de ser um termo.

Em 2000, o livro de Aileen Moreton Robinson Talkin’ Up to the White Woman: Indigenous Women and Feminism (Falando com a Mulher Branca: Mulheres Indígenas e Feminismo) expressou a frustração das mulheres aborígenes e das Ilhas do Estreito de Torres pelo fato de o feminismo branco não abordar adequadamente os legados de desapropriação, violência, racismo e sexismo.

Certamente, a terceira onda acomodou visões caleidoscópicas. Alguns estudiosos afirmam que ela “lutou com interesses e objetivos fragmentados” - ou micropolítica. Isso incluía questões atuais, como assédio sexual no local de trabalho e a escassez de mulheres em cargos de poder.

A terceira onda também deu origem ao movimento Riot Grrrl e ao “poder feminino”. Bandas punk feministas como Bikini Kill nos Estados Unidos, Pussy Riot na Rússia e Little Ugly Girls da Austrália cantaram sobre questões como homofobia, assédio sexual, misoginia, racismo e capacitação feminina.

O manifesto da Riot Grrrl afirma que “estamos com raiva de uma sociedade que nos diz que Garota = burra, Garota = má, Garota = fraca”. O “poder feminino” foi sintetizado pelas Spice Girls, mais açucaradas e fenomenalmente populares da Grã-Bretanha, que foram acusadas de vender “‘feminismo diluído’ para as massas”.

Riot Grrrrl cantou sobre questões como homofobia, assédio sexual, misoginia e racismo.

A quarta onda: de 2013 até hoje

A quarta onda é sintetizada pelo “feminismo digital ou online”, que ganhou força por volta de 2013. Essa era é marcada pela mobilização online em massa. A geração da quarta onda está conectada por meio de novas tecnologias de comunicação de maneiras que não eram possíveis anteriormente.

A mobilização online levou a manifestações espetaculares nas ruas, incluindo o movimento #metoo. O #Metoo foi fundado pela ativista negra Tarana Burke em 2006 para apoiar os sobreviventes de abuso sexual. A hashtag #metoo se tornou viral durante o escândalo de abuso sexual de Harvey Weinstein em 2017. Ela foi usada pelo menos 19 milhões de vezes somente no Twitter (agora X).

Em janeiro de 2017, a Marcha das Mulheres protestou contra a posse do decididamente misógino Donald Trump como presidente dos EUA. Aproximadamente 500 mil mulheres marcharam em Washington DC, com manifestações realizadas simultaneamente em 81 países em todos os continentes do mundo, até mesmo na Antártica.

Em 2021, a Women’s March4Justice (Marcha das Mulheres por Justiça) viu cerca de 110 mil mulheres se reunirem em mais de 200 eventos em cidades australianas, protestando contra o assédio sexual no local de trabalho e a violência contra as mulheres, após casos de grande repercussão como o de Brittany Higgins, revelando má conduta sexual nas casas do Parlamento australiano.

A Women’s March4Justice viu cerca de 110 mil mulheres se manifestarem em mais de 200 eventos em toda a Austrália. Diego Fedele/AAP

Dada a prevalência da conexão online, não é de surpreender que o feminismo da quarta onda tenha se espalhado por todas as regiões geográficas. O Fundo Global para Mulheres relata que o #metoo transcende as fronteiras nacionais. Na China, é, entre outras coisas, #米兔 (traduzido como “rice bunny”, pronunciado como “mi tu”). Na Nigéria, é #Sex4Grades. Na Turquia, é #UykularınızKaçsın (“que você perca o sono”).

Em uma inversão da narrativa tradicional do Norte Global liderando o Sul Global em termos de “progresso” feminista, a “Onda Verde” da Argentina fez com que o país descriminalizasse o aborto, assim como a Colômbia. Enquanto isso, em 2022, a Suprema Corte dos EUA derrubou uma legislação histórica sobre o aborto.

Sejam quais forem as nuances, a prevalência desses protestos de gênero altamente visíveis levou algumas feministas, como Red Chidgey, professora de Gênero e Mídia no King’s College de Londres, a declarar que o feminismo passou de “um palavrão e uma política publicamente abandonada” para uma ideologia que ostenta “um novo status de legal”.

Para onde vamos agora?

Como saberemos quando vai começar a próxima “onda”? (Alerta de spoiler: não tenho uma resposta.) Será que devemos continuar usando o termo “ondas”?

A estrutura de “onda” foi usada pela primeira vez para demonstrar a continuidade e a solidariedade feministas. No entanto, quer seja interpretada como pedaços desconectados de atividade feminista ou períodos conectados de atividade e inatividade feminista, representados pelas cristas e depressões das ondas, alguns acreditam que ela incentiva o pensamento binário que produz antagonismo intergeracional.

Em 1983, a escritora australiana e feminista da segunda onda, Dale Spender, que faleceu no ano passado, confessou seu temor de que se cada geração de mulheres não soubesse que tinha histórias sólidas de luta e conquistas atrás de si, elas teriam a ilusão de que precisariam desenvolver o feminismo novamente. Sem dúvida, essa seria uma perspectiva desanimadora.

O que isso significa para as “ondas” em 2024 e nos anos seguintes?

Para criar variedades vigorosas de feminismo daqui para frente, podemos reformular as “ondas”. Precisamos fazer com que as gerações emergentes de feministas saibam que não estão vivendo em um momento isolado, com a tarefa onerosa de começar de novo. Em vez disso, elas têm o ímpeto criado por gerações e gerações de mulheres para se basear.

This article was originally published in English

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