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Médica e assistentes trabalham numa sala cheia de computadores e painéis digitais
Central de monitoramento digital de pacientes no Hospital Albert Einstein, em São Paulo: exemplo de uso intensivo de recursos de IA e Open Health no dia a dia da Saúde no Brasil. Folhapress/Marcelo Chello

Brasil precisa debater com urgência as novas aplicações e a regulamentação da Inteligência Artificial na saúde

Na virada do século 19 para o 20, quando os primeiros sistemas públicos de energia elétrica - mais práticos, eficientes e baratos -, começaram a operar, não cabia mais discutir maneiras mais eficientes de iluminação pública a gás.

No século 21, a mesma dinâmica se observa na área da saúde. A medicina e os cuidados em saúde já estão de tal forma imersos nessas novas tecnologias digitais que é preciso passar ao próximo nível de discussão e organizar o que já está presente.

Não há sentido em discussões sobre saúde sem incorporar os avanços mais recentes nessas áreas. Termos como telemedicina, Inteligência artificial, IA generativa, Open health, que há poucas décadas eram mais comuns à ficção científica, hoje fazem parte do nosso dia a dia. Cada um desses nomes define uma área em franca expansão com aplicações na saúde e em diversos setores.

O auxílio abrangente da IA

O uso da Inteligência Artificial na saúde, especificamente, é um campo vasto a ser explorado. Ela pode melhorar desde o tempo de produção e entrega de diagnósticos à sua precisão, como ressalta o primeiro relatório da Organização Mundial da Saúde(OMS) sobre as aplicações de IA.

Um estudo feito pelo Centro Internacional de Pesquisas (CIPE) com o A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, atesta claramente o desempenho positivo da IA nessa área. Os pesquisadores utilizaram IA para identificar modelos estatísticos capazes de predizer o câncer de mama do subtipo HER2 em exames de imagem de 311 mulheres e a resposta da paciente ao tratamento. Os resultados foram de precisão diagnóstica elevada.

Além disso, a IA pode ainda ajudar a tornar mais eficientes as alocações de recursos em saúde e dar suporte em tarefas como a preparação para crises de saúde pública (como pandemias).

No âmbito individual, o uso dessa tecnologia em wearables, como os smartwatches, pode incentivar a aderência do paciente a tratamentos, ajudar na prevenção de doenças e coletar dados com mais frequência.

Um relatório de 2022 da consultoria Deloitte aponta a tendência das fabricantes de smartwatches de torná-los capazes de monitorar a pressão com mais eficiência. Exames periódicos podem deixar passar sinais de hipertensão crônica – o que demanda medições mais frequentes e precisas. O mercado para esses aparelhos, diz a consultoria, é imenso: cerca de 1,3 bilhão de adultos no mundo todo sofrem de hipertensão.

Se na versão “não generativa”, presente em apps de bancos, redes sociais e na IoT (Internet das Coisas, em inglês) a IA ainda parece algo mais distante do usuário leigo, a forma generativa ganhou o coração e a mente das pessoas. Vide o ChatGPT.

Como o nome indica, ela gera textos, imagens e vídeos originais a partir de uso da linguagem comum, sem precisar do auxílio de um programador fluente em linguagem de máquina. Com isso, tratamentos poderão ser personalizados com precisão ainda maior e exames podem ser analisados ainda mais rapidamente e de forma acessível.

De acordo com um relatório da MIT Technology Review feito no ano passado, com dados da Databricks, a IA generativa poderá ter uso destacado não apenas no desenvolvimento de remédios, mas se tornar um “assistente poderoso para a equipe da "linha de frente”.

Por causa da capacidade de processar linguagem não-técnica (ou seja, falar a língua das pessoas), transcrever e resumir anotações médicas, os pesquisadores entendem que chatbots com IA poderão responder dúvidas médicas e oferecer um contato mais fluente a consumidores e pacientes.

Infraestrutura e regramento

Parlamentos do mundo inteiro discutem legislações para a Inteligência Artificial. O 2023 AI Index Report, um levantamento da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, feito a partir de dados de casas legislativas de 127 países, mostrou que 37 projetos de lei mencionando IA foram aprovados em 2022.

O estudo indica que, em 2016, apenas um projeto aprovado mencionava IA. Nos seis anos seguintes, até 2022, as menções a IA cresceram 6,5 vezes nos processos legislativos de 81 países.

De modo geral, para que os avanços nas aplicações das tecnologias digitais e, em especial, da Inteligência Artificial, se tornem instrumentos eficazes na prestação de serviços, há muitas discussões a serem aprofundadas no ano que se inicia. Elas vão da infraestrutura necessária ao seu regramento legal.

Como muitos países, o Brasil tem feito modificações e introduzido inovações nas legislações já existentes. Publicada em 2020, a Lei nº 13.989, autorizou o uso da telemedicina durante a pandemia. A liberação veio em caráter emergencial para lidar com uma crise global de saúde que, até o fim de 2023, registrava mais de 770 milhões de casos de Covid-19 (dado da OMS).

Com esse modelo, o financiamento da saúde no setor público ganhou em eficiência, expandindo o atendimento médico via telemedicina (70% dos pacientes que fazem uso da telemedicina repetem a experiência em 60 dias) – e mesmo para o setor privado seria positivo, com redução de custos.

A mesma legislação foi adaptada em 2022 para abranger a telessaúde. A lei original se aplicava apenas a médicos – para lidar com a necessidade de manter o distanciamento social, foi preciso virtualizar as consultas. A versão ampliada de 2022, na forma da Lei nº 14.510, estendeu a todas as profissões da saúde o direito de utilizar a prestação de serviços à distância por meio de tecnologias da informação e da comunicação.

Anos antes, em 2018, havia sido sancionada a Lei do prontuário digital (nº 13.787), regulamentando a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, armazenamento e manuseio de prontuário de paciente, possibilitando às entidades de saúde substituírem o prontuário físico pelo eletrônico, com garantia da inviolabilidade dos registros e a confidencialidade das informações.

Agora, com a expansão da IA e a chegada do Open Health - o conceito de integração digital de todas as pontas relevantes de um ecossistema de saúde - acentua a necessidade de revisar as leis existentes. Afinal, trata-se de uma abordagem capaz de deixar históricos, prontuários, receitas, exames e qualquer outra informação médica relevante a respeito de um paciente à disposição de médicos e profissionais de saúde de uma forma organizada e acessível em um único sistema.

São exemplos de ajustes que buscam a adequação de inovações digitais já incorporadas à rotina, de serviços financeiros a procedimentos judiciais, no segmento da saúde.

Expansão da Internet

Temos ainda pela frente - e isso precisa ser feito o quanto antes - a tarefa de promover a ampliação do acesso à internet para que mais pessoas possam se beneficiar dos recursos digitais na saúde e outras áreas.

A pesquisa TIC Domicílios 2023, elaborada pela Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic, ligada ao Comitê Gestor da Internet do Brasil – CGI.br), mostra que 84% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet. Quer dizer que os outros 16% estão offline em plena revolução digital. Esse grupo representa cerca de 34 milhões de pessoas.

Na região Sul, 89% têm acesso, mas na região Norte apenas 79% estão conectados. Entre os domicílios com renda familiar de até 1 salário-mínimo, apenas 70% têm acesso – e nas classes D e E, isso cai para 67%. São grandes contingentes de pessoas que não estão na rede – e, como se vê, principalmente nas classes mais pobres.

Para melhorar o acesso à internet no país, a partir de agosto de 2023, provedores de acesso passaram a ter recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação (FUST) por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Em maio do ano passado, segundo o Ministério das Comunicações, foram liberados R$ 1,17 bilhão para as primeiras linhas de crédito via FUST direcionadas à conectividade em escolas públicas e telefonia móvel.

Além disso, parte desses recursos foram para a extensão de mais de 2.600 Km de fibra óptica, que chegaram a mais de 150 municípios. Em dezembro, mais R$ 1 bi foi repassado para fazer avançar a inclusão digital no país.

Na pauta, a regulamentação da IA

O avanço da tecnologia, infelizmente, não atraiu apenas os usos benéficos para a sociedade. Trouxe também o aumento dos crimes cibernéticos no Brasil e no mundo.

A lei brasileira que define os direitos e deveres de usuários e provedores de internet, o Marco Civil da internet, foi aprovada em 2014 e precisa de revisão de fôlego face aos avanços das tecnologias digitais.

Com a IA generativa, o Brasil começou a caminhar na regulamentação com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 2020 e vem passando por avanços.

Em 2023, essa Lei ganhou tópicos adicionais, como a publicação do Regulamento de Dosimetria e Aplicação de Sanções Administrativas. A primeira multa definida pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) foi dada em julho de 2023 e teve o peso de um alerta.

Na agenda de discussões para 2024, está o debate do Projeto de Lei 2.338/2023, apresenrado ao Senado, que visa regulamentar o uso da IA no país. No que se refere à saúde, por exemplo, a atual redação do projeto vem sendo bastante criticada por conter classificações de risco que podem impedir o avanço do uso da IA no setor.

Mais amplamente, discussões de cunho ético também deverão ser enfrentadas em 2024: direitos humanos, vieses preconceituosos, direitos autorais, direitos trabalhistas e mesmo cortes de vagas e dados sigilosos. Tudo isso é (mas não só) material para intensas discussões.

Responsabilidade, transparência e confiança são o tripé que sustenta a adoção das ferramentas digitais. Exclua uma e o todo desmorona. Na área da saúde, isso é ainda mais verdadeiro.

O trabalho de regulamentar o uso da inovação é incessante por definição. Encontrar o equilíbrio entre custos, avanços e regulamentação da IA na saúde será uma tarefa contínua. O ano de 2024 será o momento ideal para abrir e aprofundar essas discussões.

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