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Para reduzir custos, cada vez mais os planos de saúde dão as costas a clientes mais velhos ou em situação de vulnerabilidade, expondo a necessidade urgente de mudanças regulatórias no setor. Adriano Vizoni/Folhapress

Cancelamentos dos planos de saúde mostram fragilidade da legislação e omissão da ANS

Nas últimas semanas, temos visto inúmeras histórias sobre cancelamentos de planos de saúde de idosos e pessoas com condições de saúde delicadas e custosas. Chega a ser repetitivo: a pessoa está no plano há anos, faz grandes esforços para se manter pagando as mensalidades e, ao receber um diagnóstico preocupante, iniciar um tratamento caro ou adentrar as faixas idosas mais vulneráveis, recebe a notícia de cancelamento.

Os casos não acontecem de forma isolada. Segundo informações levantadas pelo Valor Econômico com base em dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), entre 2019 e 2023 o número de reclamações sobre a rescisão de contratos de convênios aumentou 60%. Somente de janeiro a março deste ano, foram registradas 4.873 queixas sobre esse assunto.

Algumas vezes a notícia em si, já desagradável, não é dada nem mesmo da forma correta. Casos como encontramos na mídia, de descoberta do cancelamento ao acaso, desvelam uma realidade de violações ao direito à informação e mesmo à boa fé objetiva por parte dos planos que é mais comum do que se imagina e dificilmente é percebida ou endereçada pela regulação.

Agrava ainda mais o fato de que poucos consumidores sabem do seu direito a permanecer no contrato se a rescisão ocorrer durante uma internação, caso em que a lei assegura o dever da operadora de arcar com todo o atendimento até a alta hospitalar.

Pouco se fala também que cancelar durante a internação é infração grave e acarreta em multa, mas a despeito disso, as empresas seguem fazendo dos cancelamentos com tratamento em curso uma realidade.

O que esses casos têm em comum com outros, como as recorrentes práticas de reajustes hiper elevados, são a sua causa: a grave omissão regulatória da ANS.

O mercado de planos de saúde possui uma divisão fundamental nos tipos de contrato ofertados. Há os planos individuais e familiares, que contam com uma regulação mais robusta, no sentido de proibir cancelamentos imotivados (só nos casos de fraude e não pagamento a empresa está autorizada a romper) e regular aumentos (a ANS fixa um teto para os reajustes anuais). E há os planos coletivos, empresariais ou de adesão, contratados por intermediação de um empregador, sindicato ou associação, que contam com quase nenhuma proteção por parte da ANS.

A ANS justifica sua atuação parcial na regulação de planos coletivos em interpretações restritas da lei 9.656/98 e no argumento de que nos contratos coletivos, celebrados entre pessoas jurídicas, há poder de barganha.

O argumento já foi exaustivamente colocado em xeque por instituições bastante respeitáveis, como o Tribunal de Contas da União (TCU). O Acórdão 679/2018 do TCU, feito a partir de uma auditoria realizada para avaliar as ações da ANS referentes aos reajustes dos planos de saúde, fez a ressalva de não existir evidência empírica suficiente para fundamentar a premissa regulatória de poder de barganha.

Já o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), em nota técnica publicada em 2023, com base em dados do setor, concluiu que a evidência empírica disponível não apenas indica que não há efetivo poder de barganha entre contratantes de planos coletivos e operadoras de planos de saúde, como a regulação de planos coletivos está baseada em premissa equivocada, produzindo regulação viciada e parcial. A nota arremata ainda que essa regulação gera resultados perniciosos ao mercado, como reajustes elevados e abuso na liberdade de cancelar.

Sobre essa questão, a nota informa que “a liberdade para rescindir unilateral e imotivadamente os contratos de planos de saúde, além de conferir poder de ‘expurgar’ carteiras mais adoecidas, pode também contribuir para maior assimetria de poder na negociação de reajustes entre contratantes e operadoras”.

Dentro do universo desregulado dos planos coletivos, planos de adesão e empresariais tem suas peculiaridades deletérias. Nos de adesão há a presença obrigatória de um intermediário muito indesejado: as administradoras de benefício, que atuam ora como auxiliares em atividades administrativas, ora como estipulantes (contratantes) ou gestoras das carteiras. Em alguns casos a participação da administradora é obrigatória, o que cria reservas de mercado injustificadas.

Até hoje, essas empresas não são obrigadas a dizer - e não dizem - qual é a fonte de remuneração de suas atividades. Não à toa, no início do mês, uma grande empresa de plano de saúde anunciou abertamente que está reformulando sua grade de produtos, e decidiu rever toda a modalidade de planos coletivos por adesão, com a rescisão unilateral desses contratos, intermediados por administradoras de benefícios. O argumento foi de que os contratos “demonstraram desequilíbrio extremo entre receita e despesa”.

A falsa coletivização

No caso dos planos coletivos empresariais, temos os problemas relacionados à falsa coletivização e à fragmentação do mercado.

Pela falsa coletivização, operadoras de planos de saúde tentam evitar a regulação e a lei, ofertando planos de saúde na modalidade coletiva, com características econômicas típicas de contratos individuais. Em outras palavras, consumidores que são elegíveis para planos individuais acabam contratando planos coletivos porque não encontram oferta no mercado para o seu perfil. A questão é que os planos coletivos, pensados para empresas, não têm proteção suficiente.

Famílias e pequenos grupos são atraídos pela mensalidade baixa inicialmente apresentada e pela facilidade em contratar um plano coletivo sem saber dos riscos de reajustes elevados e cancelamentos abusivos. Essa operação ocorre de forma mais prevalente por meio de contratos coletivos de Microempreendedor Individual (MEI).

Além de ruim per si, porque quase fraudulenta, a falsa coletivização ainda aprofunda outro fenômeno, o da fragmentação do mercado de coletivos. Nos contratos coletivos menores, o ônus da rescisão é muito pequeno para a empresa de planos de saúde. É muito mais fácil o plano “se livrar” de uma carteira de 5 consumidores do que de uma carteira de 500, caso algum desses consumidores tenha uma doença custosa. Assim, a tendência do mercado nos últimos anos tem sido a de ofertar cada vez mais planos PME, ou “pejotinhas”.

Quanto mais dividido o mercado em contratos fragmentados, mais fácil os planos romperem o contrato uma vez identificados casos de doenças ou condições indesejadas. O nome desse fenômeno é seleção de risco (leia-se exclusão dos mais vulneráveis), prática abusiva e vedada, mas que acontece cotidiana e publicamente, protegida sob o disfarce da “liberdade contratual”. E, quanto mais a regulação permite contratos pequenos como forma de suprir a demanda pelos planos individuais, mais ela favorece a possibilidade da operadora se livrar dos vulneráveis, fazendo seleção de risco.

Dá para perceber como a questão dos cancelamentos imotivados descortina um universo de possibilidades perversas de deixar quem precisa a ver navios. E, para solucionar esse problema dramático, bastaria a ANS regular os planos coletivos tal como pedem o Idec, a Fundação Procon SP, o Brasilcon e mais uma série de outras entidades de defesa do consumidor, com apoio da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon).

Um evento, organizado pelo Idec e pela Fundação Procon SP, já está marcado para o dia 24 de abril para pressionar pela agenda.

Nada mais justifica o silêncio negligente da ANS no enfrentamento da questão. Autora de estudos que apontam ao menos desde 2017 o esgotamento do modelo dos contratos coletivos e a necessidade de uma mudança, o corpo técnico da agência sabe o que precisa ser feito, mas as medidas não avançam na diretoria colegiada, muito em razão do pesado lobby que as empresas exercem dentro da agência.

A inércia é tanta que o Legislativo tomou a dianteira na resolução do problema. O Deputado Duarte Jr. (PSB/MA), apresentou em setembro de 2023 um relatório ao PL 7419/06, propondo mudanças no marco legal do setor de planos de saúde, algumas delas bastante positivas e arrojadas.

Dessas, a mais importante, na visão consumerista, é a proibição do cancelamento unilateral dos contratos coletivos. Propostas como essas, que realmente tem o condão de resolver problemas estruturais do mercado, merecem ser tiradas da gaveta e levadas adiante pelo Congresso e pela ANS. Para o bem do mercado e dos consumidores, esperamos que essas autoridades não façam ouvidos moucos.

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