As plataformas de streaming têm se notabilizado por colocar mulheres comuns, independentes e profissionalmente qualificadas, em papéis de protagonismo. Netflix e Apple despontam nesse cenário, sendo que a segunda faz um investimento mais focado em ficção científica e especulativa, de tendência distópica.
O discurso desenvolvimentista também cede lugar à total desconfiança com relação à tecnologia. São mulheres normais, nem heroínas, nem contrarrevolucionárias, mas distantes do papel de vítimas que as produções de scifi reservaram a elas num passado recente. Ao serem desafiadas, não hesitam em defender a prole e o seu mundo.
Sai do primeiro plano o herói atlético, musculoso, que não chora, e ganha destaque a mulher distópica, disfuncional, que se joga na vida e no amor. Ao assumir papéis que sempre foram destinados aos homens, essas anti-heroínas dedicadas à profissão e que não abrem mão da sua sexualidade e sonhos colocam o dedo na ferida do sistema. Os fortões passam a coadjuvantes.
Na série Invasão (Invasion, 2021-2024), a médica Aneesha Malik (Golsshifteh Farahani), de etnia indiana, a princípio parece hesitante. A vida dela nem sempre foi movimentada. Vive com os dois filhos, Luke e Sarah, ao lado do marido Ahmed (Firas Nasser). Ao mesmo tempo em que descobre a intenção dele de abandoná-la por outra mulher, surgem evidências de uma invasão alienígena.
Sem vacilar um segundo, Aneesha pega o carro e sai estrada afora com a família, enfrentado situações complexas e desafiadoras, dividida entre a Coalizão Nacional de Defesa e os ativistas do Movimento, que criaram bunkers de resistência aos estranhos vindos do espaço e ao contágio que disseminam por esporos.
A presidenta da Coalizão é uma mulher, Benya Mabote (a sul-africana Moshidi Motshegwa). Em paralelo, há mais figuras femininas, como a jovem adolescente Jamila Huston (India Brown) e seu amor pelo garoto abduzido Caspar Morrow; e a cientista Mitsuki (Shioli Kutsuna), apaixonada pela astronauta Hinata (Rinko Kikuchi). Nenhuma delas, salvo a presidente, uma estadista, se encaixa no perfil clássico de heroína super poderosa.
Em Silo (2023-2024), a engenheira Juliette Nicchols, interpretada pela sueca Rebecca Ferguson (agora mais famosa pela participação em Duna), não possui estrutura familiar e foi aparentemente renegada pelo pai, o médico que a entregou ainda menina e órfã aos cuidados de uma amiga, a mecânica Martha Walker (Harriet Walter).
Martha cria Juliette numa sociedade pós-apocalíptica que foi obrigada a se refugiar nos subterrâneos, e é comandada pela figura do xerife Bernard Holland (Tim Robbins).
Nesta fantasia distópica, o ar da Terra está contaminado e é altamente tóxico e mortal, o que forçou os últimos 10 mil sobreviventes a morarem em um silo subterrâneo. Existe um comando superior composto por fundadores daquela comunidade, ao qual ninguém tem acesso que remete, e que lembra, em imaginário, os imigrantes protestantes nos Estados Unidos.
Todos vivem sob regras austeras e amedrontados, pois uma das punições desta nova sociedade é justamente ser expulso e morrer intoxicado. A população subterrânea nada sabe sobre os motivos desse desastre ambiental e de como foram parar no subsolo, pois os arquivos que poderiam elucidar o mistério foram destruídos.
Juliette é quem vai enveredar por essa investigação, movida pelo desejo de saber o que aconteceu e pela morte não esclarecida de seu namorado, um ativista da oposição. Ela conta com o apoio incondicional de sua tutora, a misteriosa Martha (Harriet Walter).
A série é inspirada nos livros do autor norte-americano Hugh Howey, Wool, Shift e Dust, e tem mais duas temporadas previstas.
Em O Sinal (The Signal,2024), a astronauta alemã Paula (Peri Baumaister) faz parte de uma missão secreta para a Estação Especial Internacional, um projeto global que envolve cientistas do governo e empresas numa viagem exploratória. Paula é a única mulher a bordo. Na Terra estão seu marido, Sven (Florian David Fitz, um dos criadores da série) e a filha, a irresistível Charlie (Yuna Bennet).
A série é original da Netflix em coprodução Alemanha/França. Paula, a cientista, é uma mulher como outras do nosso tempo, e tem problemas de comportamento que se esforça para manter sob controle. Ela lida, por exemplo, com sintomas de bipolaridade e toma antidepressivos.
A certo momento da missão espacial, Paula passa a ter visões de contatos com extraterrestres. Seu companheiro de aeronave e amigo pessoal, Hadi Hiraj (o iraniano Hadi Khanjanpour), começa a agir de modo suspeito, levando o espectador a crer que Paula tem razão e os sinais são reais, mas mascarados por ele, que ambiciona vender a informação ao final da viagem.
A tensão aumenta até que, na viagem de volta à Terra, Paula desaparece sem deixar vestígios. Ao ser resgatada, embarca em um avião que também some.
O Problema dos 3 Corpos (3 Body Problem, 2024) é baseada na trilogia best-seller do premiado escritor chinês Liu Cixin. A série em seis episódios foi adaptada pela mesma dupla que fez Game of Thrones, David Benioff e D. B. Weiss.
A série original teve uma versão de 30 episódios lançada na China em 2023, um tremendo sucesso. A versão da Netflix altera um elemento fundamental do texto original, que é a criação e o protagonismo das personagens femininas que se destacam já na formação do grupo de amigos cientistas (os cinco de Oxford) em torno do qual se desenvolve essa narrativa cheia de reviravoltas.
O ponto de partida é dado pela astrofísica Ye Wenjie (Zine Tseng) que, desiludida com a Revolução Cultural testemunhada na China, na década de 1960, faz o primeiro contato com os alienígenas.
Anos depois, a física Jin Cheng (Jess Hong), e sua melhor amiga, a cientista e intelectual de esquerda Augustina “Auggie” Salazar (Eiza González), vão se empenhar em descobrir o que levou a filha de Ye, Vera, amiga e mestra por elas admirada, a cometer suicídio.
Jin quer salvar o mundo, mas quer se casar com o namorado Raj Varma e ter filhos. Sem a sagacidade e a pertinácia dela, o público não teria como desvelar a verdade sobre os alienígenas e sua Sophon (Sea Shimooka), uma entidade criadora de ilusões.
Comum e romântica é igualmente a cientista Ye, agora idosa, que dá oportunidade a Rosalind Chao (a Keiko O´Brien de Star Trek) de mostrar seu talento imenso ao personificar aquela que trai a sua humanidade para buscar um destino melhor para todos.
Já Iluminadas (Shining Girls, 2022) propõe uma viagem no tempo por realidades alternativas. Mas a situação ganha contornos de pesadelo quando a vítima de um serial killer (Jamie Bell) escapa de morrer nas mãos do fascínora, perde o controle sobre os lapsos de tempo e passa a ser vista como uma doida.
A protagonista é aquela moça simpática e torturada de O Conto da Aia, Elizabeth Moss, produtora de Iluminadas e intérprete da mocinha Kirby Mazrachi, que se converte em investigadora e jornalista para descobrir a verdade sobre o criminoso.
As coisas começam a fazer algum sentido quando ela se dá conta de que também viaja no tempo, e por isso tem tantos lapsos de memória. Desajeitada, vestida com roupas comuns, nossa anti-heroína Kirby demora a perceber o risco que corre ao descobrir o portal que ajuda o assassino a viajar pelo tempo para escolher suas vítimas.
Para completar, Kirby tem a ajuda inestimável de amigo e repórter Dan Velásquez (o ator brasileiro Wagner Moura), que fala português com o filho (a pedido do ator, pois o personagem inicialmente falava espanhol). A história é baseada em romance da sul-africana Lauren Beukes.
Feminino fora dos padrões
Bárbara Creed, autora australiana que se dedicou a estudar o feminino monstruoso articulando cinema e psicanálise, chama a atenção para o fato de que os filmes de ficção científica e horror sempre foram povoados por monstras. Muitas delas evocadas a partir de mitos ancestrais de diferentes culturas e imagens que assombram os pesadelos infantis.
Ao escrever The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis em 1993, Creed considerava que o feminismo havia se precipitado em criticar as monstras como mais uma expressão do patriarcado. Para ela, o lugar de monstra em filmes de horror popular não necessariamente estava sempre associado ao mal, e sim às transformações para sobreviver diante de condições adversas.
Na ficção científica, esse estranhamento do feminino e a “monstruosidade” pode assumir diversas facetas. Em Alien, de 1986, Ripley (Sigouney Weaver) é a mocinha convencional de terror-scifi que entra em uma luta insana com a Rainha Alien, ambas defendendo suas crias. Em Iluminadas, a astronauta Paula tem uma doença não identificada e delira, enquanto em O Problema dos 3 Corpos, Auggie passar a ver símbolos e enfrenta situações inimagináveis. Todas vivem entre o real e o imaginário, como mediadoras entre dois mundos.
Por essa perspectiva, as nossas anti-heroínas esquisitas, disfuncionais, distópicas, seriam o novo normal? Não se trata de romper padrões, mas representar exponencialmente um mundo instável, em completo deslocamento. Nossas anti-heroínas sonham com outra realidade, enxugam as lágrimas e lutam contra ameaças. A semelhança com o presente não é coincidência.