Neste domingo ocorrerá na Argentina o segundo turno das eleições presidências; nele se enfrentam o atual Ministro de Economia, Sérgio Massa (51 anos), candidato da situacionista “União pela Pátria” (peronista), e um outsider do sistema político tradicional, o economista autodefinido como anarcocapitalista, Javier Milei (53 anos), candidato do novo partido de (ultra)direita “A Liberdade Avança”.
Milei tem um caráter explosivo. Sua agressividade fica simbolizada na motoserra que empunha nos atos de campanha. Seus discursos atacam os políticos (“a casta”) e o Estado, visto como um agente que restringe as liberdades; insulta os que ele julga como socialistas, de Keynes ao Papa Francisco (de quem disse ser o representante do maligno na Terra); afirma que a justiça social é um roubo.
Entre suas propostas econômicas estão a de fechar o Banco Central, a dolarização da economia, um mercado de órgãos, vouchers para a Educação, a rápida e radical redução do gasto público e a eliminação das transferências sociais. A promessa de cortar relações com o Brasil e a China, dois dos principais parceiros comerciais do país, por serem ‘comunistas’ completa o quadro.
Em sua primeira incursão na política, Milei foi eleito deputado federal em 2021, mas faltou frequentemente às sessões, ou dormiu nelas, e muitas vezes se absteve ou saiu antes das votações.
Em comparação, Massa é mais convencional. Político que atua há muito no peronismo, foi deputado estadual e prefeito até virar chefe de gabinete no primeiro governo da Cristina Kirchner, cargo no qual ficou um ano. Tornou-se mais tarde opositor ao kirchnerismo, e com sua própria versão do peronismo, a Frente Renovadora, foi eleito deputado nacional em 2013. Foi candidato a presidente em 2015, ficando terceiro.
Para as eleições de 2019, a maioria das correntes do peronismo, incluindo a sua, fecharam com a candidatura de Alberto Fernández. Massa virou presidente da Câmara e em meados de 2022 virou Ministro de Economia. Em suas propostas, ele sempre enfatiza a necessidade de um grande acordo para acabar com a crise do país, e promete chamar opositores para seu governo.
Um pleito com características inéditas
Além das características dos candidatos, esta eleição pode ser considerada a mais importante dos 40 anos desde o retorno à democracia.
Atribuo a esta eleição esse caráter especial porque é a primeira vez em que chega à instância decisiva um candidato, Milei, que rejeita a política de memória pela verdade e pela justiça, o “Nunca Mais”, pedra fundamental da reconstrução da democracia no país.
O candidato de direita e sua vice, a advogada Victoria Villarruel, têm feito reiteradas críticas a essas políticas, minimizando o plano genocida da ditadura (1976-1983), atribuindo as desaparições e torturas a ‘alguns excessos’. A irrupção deste candidato decorre da complicada situação econômica, para a qual o governo do presidente Alberto Fernández não tem encontrado respostas.
A economia sofreu nos últimos meses uma aceleração da inflação e as reservas internacionais encontram-se em valores muito baixos. Há quem diga que esta é a maior crise da história argentina, o que revela uma descomunal falta de memória.
A economia durante o atual governo cresceu a taxas baixas, porém positivas, assim como o emprego, especialmente o industrial; por sinal, a própria indústria apresenta resultados bastante satisfatórios num momento difícil. Seria absurdo, por exemplo, querer comparar esta situação com a de 2002, início do atual ciclo político.
Nesse ano, a Argentina estava com desemprego recorde, e vinha de uma desvalorização de 200% depois de anos de conversibilidade; o país encontrava-se fortemente endividado em dólares, inclusive com o FMI. As classes médias estavam revoltadas porque suas poupanças, supostamente em dólares, foram passadas para pesos com importantes perdas.
Se a situação na qual o presidente Alberto Fernández assumiu era complicada, certamente o quadro piorou muito com a pandemia. As medidas adotadas para enfrentá-la conseguiram manter razoavelmente o nível de atividade, além de compensarem parcialmente a renda daqueles cujas atividades tinham sido forçosamente paralisadas. As restrições à mobilidade, porém, foram consideradas exageradas por parcela significativa da população, rejeição estimulada pela grande mídia completamente alinhada com a oposição.
A partir de 2021, a virada à direita
Nas eleições legislativas de 2021, o Mudemos (agora Juntos pela Mudança), coligação que apoiara o presidente Macri, conseguiu 43% dos votos, enquanto o kirchnerismo/peronismo apenas 35%. Nesse contexto de virada à direita da opinião pública, chamou a atenção a surpreendente votação, nas eleições legislativas da Cidade de Buenos Aires em outubro passado, de um partido novo, A Liberdade Avança, que obteve 17% dos votos. Quem encabeçava esse partido era, precisamente, Javier Milei.
O ano de 2022 foi muito complicado para o governo do presidente Fernández. Diversas disputas entre ele e sua vice-presidente, a queda de sua popularidade (que não se estendeu à Cristina), uma seca excepcional que prejudicou a agricultura, a retração da economia mundial pela guerra da Ucrânia, além da saída do seu Ministro de Economia, Martín Guzmán, levaram alguns a pensar que ele não conseguiria concluir seu mandato.
A nomeação de Sérgio Massa como Ministro de Economia conseguiu deter as corridas contra o dólar, trazendo algo de calma a uma economia muito combalida. Essas dificuldades continuaram em 2023, especialmente com o fracasso sistemático das tentativas de diminuir a inflação. Apesar disso, a imagem de Massa como o efetivo condutor do governo foi se consolidando. E, na hora de escolher o candidato peronista, ele acabou sendo apoiado por quase todos os setores.
A ascensão de Milei
No começo da campanha de 2023, a candidatura de Milei foi bem recebida pelos conservadores que supunham que ele atingiria um público essencialmente pobre, masculino e jovem, setor que historicamente apoiava candidatos peronistas - e assim tirando votos deles. O complicado calendário eleitoral argentino, no qual as províncias e os municípios podem escolher o dia das eleições, fez com que houvesse desde março inúmeros confrontos locais. Em praticamente todas as eleições existiam partidos regionais alinhados com Milei. Todos eles obtiveram menos do que 15% dos votos e, na grande maioria dos casos, não chegaram a 5%.
O sistema eleitoral argentino também adota eleições primárias simultâneas e obrigatórias. Todos os partidos têm que realizar eleições internas, mesmo quando têm um único candidato, pois só podem concorrer nas eleições as listas que obtiverem no mínimo 1.5% nas primárias.
Antes dessas eleições, realizadas no 13 de agosto, havia um certo script no ar, no qual coincidiam os institutos da pesquisa e a grande imprensa. Nessa leitura, o Juntos pela Mudança (JxM) ficaria em primeiro lugar, o peronismo em segundo e Milei em terceiro. Sendo assim, a única disputa relevante ocorreria no interior do JxM, para ver se o candidato seria o Horácio Rodriguez Larreta, do setor mais moderado (as pombas) ou a Patrícia Bullrich, do setor mais agressivo (os falcões).
Seguia o script dizendo que, no primeiro ou no segundo turno, Milei acabaria apoiando o candidato do JxM, e este se imporia nas eleições com uma margem superior aos 60% dos votos, garantindo a força para realizar mudanças radicais de corte liberalizante.
Para surpresa geral, Milei foi o primeiro nas primárias, ganhando em 16 dos 24 distritos do pais; o peronismo ganhou em 5 e o JxM, em 3. A diferença entre os três partidos foi mínima, 2.8% do primeiro, Milei, ao terceiro, Massa, enquanto Patrícia Bullrich, ganhadora da interna do JxM, ficou em segundo.
Esta situação provocou um desconcerto nas elites econômicas que apoiavam o JxM. A candidatura de Bullrich começou a naufragar no dia posterior às primárias, pois parecia estar se cristalizando um confronto entre Milei pela direita e Massa pelo centro e centro-esquerda, sem espaço para uma direita desprovida do charme da novidade.
Campanha cheia de surpresas
Finalmente, no primeiro turno das eleições, em 22/10, houve outra surpresa: o candidato peronista pulou de terceiro para primeiro, com 36.7%, Milei ficou estagnado em 30% e o JxM só conseguiu 23.8%. Massa se impôs em 13 distritos, Milei em 10 e o JxM só se manteve no seu reduto da cidade de Buenos Aires. Essa simples soma de percentagens, porém, esconde que a participação no primeiro turno aumentou 7% em relação às primárias, e que o número de votos em branco caiu pela metade.
A questão no segundo turno será a de ver para onde vão os votos dessa terceira parte do eleitorado que não votou no Massa nem no Milei. Este conseguiu, logo após o primeiro turno, o apoio do ex-presidente Mauricio Macri e de Bullrich. Isto não significa, porém, um apoio de todo o JxM: diversos setores propõem votar em branco, alguns preferem liberdade de ação, e outros declararam apoio a Massa.
A esquerda supõe-se que votará a Massa ou em branco, e entre os seguidores de Schiaretti muitos apoiam Massa, apesar de que o candidato parece ser mais simpático a Milei.
No debate obrigatório entre os candidatos, realizado no dia 12 de novembro, houve uma constatação, até entre os jornalistas de direita, de que Massa saiu-se muito melhor.
Milei não conseguiu encurralar o candidato que é ministro de uma economia em situação difícil, enquanto Massa atacou com solidez as inconsistências das propostas de Milei e cobrou dele se levaria a cabo suas propostas mais bombásticas.
Certamente o caráter de Milei afasta muitos eleitores moderados, e sua aliança com o impopular Macri pode espantar os que acreditavam em sua distância da ‘casta’. Por outro lado, a situação econômica difícil joga contra Massa.
Considero que, apesar destas dificuldades, os argentinos saberão escolher o caminho mais equilibrado, evitando um salto no escuro cujas consequências são imprevisíveis.