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A lenta volta para casa em meio à retirada de entulho em São Leopoldo, RS: com a baixa das águas, micro-organismos causadores de doenças emergem da lama e do lixo acumulados. Pedro Ladeira/Folhapress

Desastre climático no Rio Grande do Sul: crise sanitária à vista?

As consequências da tragédia causada pelas recentes inundações no Rio Grande do Sul são incalculáveis e, infelizmente, extrapolam a nossa imaginação, sobretudo pelas diferentes nuances que podem assumir. Infelizmente, essa tragédia ainda nos reserva muitas surpresas, mesmo após as águas baixarem e as pessoas retornarem às suas vidas (dentro do possível) normais.

Muito se tem discutido sobre a perda de vidas, de infraestrutura pública, de patrimônio e bens acumulados durante vidas inteiras e sobre as dificuldades - ou mesmo impossibilidade - de recuperá-los. No entanto, pouco se tem falado sobre os riscos sanitários que esses eventos geralmente acarretam e cujas consequências começam a ser sentidas à medida que a situação se prolonga. Nesse sentido, a questão sanitária representa um componente crítico dessa crise e, como tal, deve ser tratada.

Os riscos que as águas trazem

Vários micro-organismos causadores de doenças - como vírus, bactérias e parasitas - vivem no ambiente à espreita e, sob condições apropriadas, emergem das águas, da lama e do lixo para expressar o seu enorme potencial nocivo. Alguns desses organismos são altamente deletérios para a saúde humana, e a sua emergência e disseminação são amplamente favorecidas pela deterioração das condições de saneamento básico, habitação, higiene, limpeza urbana, nutrição e de saúde física e mental.

São condições ideais para uma tempestade perfeita, sobretudo quando associadas aos ambientes altamente lotados e pouco salubres dos abrigos públicos, agravados pelas deficiências históricas do nosso sistema de saúde. São inimigos silenciosos, que se alastram sem alarde e, não raras vezes, causam estragos maiores do que rios caudalosos fora dos leitos ou do que a elevação prolongada nos níveis das águas.

Dentre as doenças associadas com inundações, destaca-se a leptospirose, cuja bactéria é transmitida pela urina, principalmente de ratos, e penetra através da pele das pessoas que ficam em contato prolongado com água contaminada. Minimizam-se os riscos de contaminação evitando o contato com a água das enchentes e/ou utilizando botas e luvas de borracha para proteção. Quando o contato é inevitável, recomenda-se banhos com água limpa e sabonete após a exposição, além de busca ao serviço de saúde aos primeiros sinais de febre, dores musculares e mal-estar.

Doenças adquiridas pelo consumo de água contaminada, como a hepatite A, gastroenterites virais, bacterianas e parasitárias, também são importantes atores nessas situações, pois as estações de tratamento de água e esgoto estão colapsadas ou, na melhor das hipóteses, sobrecarregadas e incapazes de oferecer água potável suficiente. Essas doenças podem ser evitadas pelo consumo exclusivo de água engarrafada, fervida ou adicionada de hipoclorito de sódio a 2.5%. E, aos primeiros sinais de doença (diarréia, náuseas, vômitos), deve-se procurar a unidade de saúde.

Para pessoas envolvidas diretamente nos resgates, o tétano é uma preocupação adicional, pelo contato da pele com eventuais ferimentos com água e solo contaminado. Essa doença pode ser prevenida por desinfecção/limpeza das feridas após a exposição e/ou vacinação.

Cobras, escorpiões e aranhas são outros importantes atores nessas tragédias e podem, ocasionalmente, causar acidentes com pessoas.

Os riscos que se alojam nos abrigos

O alojamento de dezenas de milhares de pessoas em abrigos públicos traz um pouco de alento, conforto, condições mínimas de higiene e alimentação, assistência médica e psicológica, minimizando os impactos físicos e emocionais. No entanto, as condições de aglomeração e precariedade de instalações nesses abrigos - além do estresse, que debilita o organismo - expõem as pessoas a grande risco de doenças respiratórias (influenza, resfriados, covid) e gastroentéricas.

Doenças de pele também estão fortemente associadas a desastres climáticos e condições precárias de coabitação e higiene pessoal. Ou seja, a solução para o desabrigo ou desalojamento enseja o surgimento de outros problemas, inerentes às condições demográficas e muitas vezes insalubres encontradas nos abrigos.

Cabe às autoridades sanitárias encontrar a melhor condição para minimizar os riscos associados ao alojamento dessas pessoas nesses locai. Em especial, vacinação maciça contra a gripe (influenza) e covid, além de hepatite A e rotaviroses. Reforços de vacinação contra doenças da infância também são absolutamente inadiáveis para reduzir a vulnerabilidade sanitária nessas pessoas.

O acompanhamento clínico e psicológico por agentes de saúde ou por voluntários capacitados também possui grande importância para a manutenção do estado geral de saúde.

Os riscos que chegam com pets e mosquitos

Outro aspecto muito relevante nessa tragédia se refere aos animais de companhia afetados e resgatados. A mobilização da comunidade em resgatá-los, abrigá-los, tratá-los e eventualmente os encaminharem de volta aos tutores ou para adoção tem sido comovente.

Mas a saúde desses animais também deve ser motivo de preocupação, pois várias doenças que os afetam são transmissíveis para pessoas. Assim, reforços de vacinações (contra raiva, leptospirose e outras) e tratamentos antiparasitários (verminoses, pulgas) são críticos nessa situação, pois visam, além de preservar a saúde animal, preservar a saúde das pessoas em seu entorno.

O retorno das águas aos seus níveis normais e das pessoas às suas casas (ou moradias temporárias) não encerra o ciclo das possíveis consequências sanitárias. À medida que as águas baixarem, milhares de depósitos de água se formarão, propícios a procriação do Aedes aegypty, transmissor do vírus da dengue.

Assim, além das doenças mencionadas acima, os cuidados públicos e individuais com a dengue devem ser redobrados, pois condições muitos propícias à proliferação dos mosquitos e a explosão dos casos parecem iminentes. Além disso, àquelas pessoas que retornarão às suas casas após a redução do nível da água, recomenda-se o uso de luvas e botas de borracha durante a limpeza, para evitar o contato com água e lama contaminada.

A reconstrução requer a participação de todos

Passada a crise humanitária e sanitária aguda, o momento de reconstrução da infraestrutura pública deve incluir necessariamente a limpeza criteriosa dos ambientes urbanos, a recuperação de estações de tratamento de água e esgoto, além dos sistemas de esgotamento pluvial das cidades, para que eventuais eventos futuros tenham menor impacto sanitário. As deficiências na estrutura e operação do sistema oficial de saúde no enfrentamento da crise também podem servir de lições, ensejando ações oficiais para corrigi-las.

É evidente que a questão sanitária é um importante componente da crise atualmente vivida pela população do Rio Grande do Sul. E precisa ser levada a sério. Para isso, é necessário o engajamento completo e incansável de todos os setores da sociedade gaúcha e também nacional.

Além das ações que cabem ao poder público, a mídia possui um papel importante, pela divulgação de informações relevantes e confiáveis, com embasamento e foco exclusivamente técnicos, desprovidas de conotação ideológica ou política.

À população cabe, em curto prazo, acompanhar as informações e seguir as recomendações oficiais. À médio e longo prazos, deve seguir as orientações relativas à preservação do ambiente urbano e rural, evitando desmatar e construir em áreas de risco, dando destinação correta ao lixo, contribuindo para a limpeza urbana, evitando criatórios de mosquitos: ações muitas vezes negligenciadas pela maioria da população e que somente são valorizadas nesses momentos.

Se todas essas medidas tivessem sido adotadas, provavelmente o impacto dessa tragédia ambiental – e sanitária - teria sido infinitamente menor.

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