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Detalhe do cartaz da campanha de 2023 da AIDS Healthcare Foundation (AHF), maior organização de luta contra a AIDS do mundo. O mote desse ano é: “It’s not over” (“Ainda não acabou”). De acordo com ativistas, movimento internacional de prevenção à doença está em “estado de inércia”. Business Wire / AP

Dia Mundial de Luta contra a AIDS: doença ainda desafia mecanismos de controle no Brasil e no mundo

O dia 1º de dezembro marca o Dia Mundial de Luta contra a AIDS, data criada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1988. No Brasil, a lei 13.504 de 2017 instituiu uma campanha chamada Dezembro Vermelho, dedicada ao lançamento de atividades e mobilizações que visam à conscientização da população sobre prevenção, tratamento e direitos de pessoas vivendo com HIV/AIDS (vírus da imunodeficiência humana/síndrome de imunodeficiência adquirida).

Neste ano de 2023, continua fundamental falarmos sobre o assunto. Convivemos com o HIV e com a AIDS há mais de 40 anos e sabemos que a “cara da AIDS” mudou muito desde a década de 1980 (é também importante destacar que nem toda infecção pelo HIV se desenvolve em AIDS). Se no início receber o diagnóstico positivo para o HIV (ou para a AIDS) representava uma sentença de morte, hoje, com o tratamento adequado, é possível ter uma expectativa de vida igual à de pessoas seronegativas (ou seja, que apresentam sorodiagnóstico negativo), de acordo com um estudo publicado pela revista The Lancet em 2021.

O avanço tecnológico farmacêutico não se deu apenas no tratamento, mas também na prevenção ao HIV/AIDS. Hoje, existe a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (Prep), medicamento antirretroviral que reduz em até 99% as chances de se infectar com o vírus através do sexo, de acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC ou, em inglês, Centers for Disease Control and Prevention), dos Estados Unidos.

Apesar de todo este avanço científico, controlar a epidemia de HIV/AIDS no Brasil ainda é um desafio. Dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde apontam que, entre jovens homens de 14 a 29 anos, houve aumento de 20% em diagnósticos no período entre 2011 e 2021. Mais da metade dos casos de HIV ocorre entre jovens de 20 a 34 anos, sendo que mais de 52 mil destes jovens vieram a desenvolver a AIDS. De modo geral, apesar de a infecção pelo HIV ser relativamente baixa (1% da população), os números são considerados elevados quando olhamos para determinados subgrupos.

Se no passado o Brasil foi um dos países que se destacaram pela resposta à epidemia, não só por ter instituído a lei Sarney de 1996, que garante acesso universal a tratamento, mas por ter proposto inúmeras iniciativas de prevenção, combate ao estigma e promoção de direitos de pessoas vivendo com HIV/AIDS, hoje a situação é preocupante. Parte do declínio desta política envolve, durante os últimos anos, a impossibilidade da participação efetiva do movimento social de AIDS, composto por organizações não governamentais e redes de pessoas vivendo com HIV/AIDS.

Movimento Social de AIDS

A forte mobilização do movimento de AIDS foi em grande parte responsável não só pela criação e implementação do Programa Nacional de DST e AIDS, mas também por sua sustentação ao longo dos anos. Seu surgimento nos anos 1980, com uma abordagem baseada em direitos humanos, se beneficiou do clima da época da redemocratização, em que exilados políticos como Herbert de Souza, o Betinho, voltavam ao país para fazer ativismo político e lutar por direitos humanos, inclusive o direito à saúde universal.

Ação do Dia Mundial da AIDS no Cristo Redentor, realizada em 2007: se no passado, o Brasil foi um dos países que mais se destacou no combate à epidemia, hoje a situação é preocupante.

Além de alcançar importantes vitórias nos anos 1980 e 1990, o movimento também desempenhou um papel fundamental na luta contra o HIV/AIDS nos anos 2000. A negociação de preços com a multinacional farmacêutica Merck pelo antirretroviral Efavirenz, e mais tarde a emissão de sua licença compulsória pelo governo brasileiro só foram possíveis graças a uma campanha de sensibilização e pressão lideradas pelo movimento.

Tão importante quanto a luta por acesso ao tratamento foi a luta contra o estigma e preconceito, que condenavam (e condenam) o doente à “morte civil”. O medo do estigma também acaba muitas vezes prejudicando o diagnóstico e a adesão ao tratamento, além de ter efeito nocivo sobre a saúde mental de pessoas que vivem com HIV/AIDS.

Hoje, apesar de a “cara da AIDS” ter mudado, o estigma e preconceito continuam fortes, e o acesso ao tratamento não é universal. Dados do Ministério da Saúde mostram que a histórica desigualdade racial enfrentada por pessoas negras e pardas continua sendo um importante determinante social de saúde: a população negra é desproporcionalmente a maior vítima de mortes por AIDS no Brasil, e os números continuam aumentando a cada ano. Não podemos esquecer dos dois grupos mais acometidos pelo HIV/AIDS: homens gays e bissexuais e pessoas trans.

Diante deste cenário, a atuação do movimento de AIDS se mostra (assim como sempre se mostrou) fundamental para cobrar do poder público intervenções para redução da homofobia e transfobia, o acesso à saúde integral por parte de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade, além do acesso à prevenção, incluindo a Prep. A epidemia de AIDS precisa ser enfrentada de forma multifacetada e intersectorial, com ações que combatam o racismo estrutural, o preconceito, o estigma, que promovam educação sexual nas escolas e campanhas de conscientização sobre prevenção, entre outras.

O “apagão” em campanhas

No entanto, o movimento se encontra, de acordo com ativistas, em “estado de inércia”. Essa desmobilização é decorrente de uma série de fatores, como a ascensão da extrema-direita no Brasil, que comprometeu a luta contra a AIDS e a relação entre Estado e movimento social, já que parte dos recursos das ONGs vinham de editais do governo federal. Apesar de ter dado continuidade ao tratamento, o governo Bolsonaro promoveu um “apagão” em campanhas de prevenção contra a AIDS, fechou as portas institucionais para qualquer participação social do movimento na elaboração de políticas e campanhas, e retirou a palavra AIDS do Departamento de AIDS, num claro sinal de que a AIDS não era prioridade para o governo.

Este cenário só veio a piorar uma tendência global de perda do excepcionalismo que a AIDS tinha nos anos 1980 e 1990. Desde os anos 2000, porém mais acentuadamente a partir de 2010, ONGs de HIV/AIDS sofrem com a falta de financiamento. A luta contra a AIDS deixou de ser prioridade não só para as fundações internacionais, que no passado foram fundamentais para financiar projetos do movimento, mas também sofreu um revés nas organizações internacionais como a UNAIDS, cujo orçamento de 2022 teve déficit de US$ 50 milhões. Além disso, o início dos anos 2010 viram surgir o discurso do “fim da AIDS”, que deu ênfase a soluções baseadas em medicamentos e na responsabilidade individual, em vez de respostas coletivas de prevenção e cuidado, que levem em conta problemas estruturais como os mencionados acima.

O futuro do Movimento

No começo deste ano, com o novo governo, houve reestruturação do departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, que passou a se chamar Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DATHI), e retomada e recomposição de espaços consultivos e deliberativos como a Comissão de Articulação dos Movimentos Sociais (CAMS) e o Conselho Nacional da AIDS (CNAIDS), historicamente importantes para a articulação da sociedade civil na construção das políticas de HIV/AIDS.

Mais de 30 organizações que trabalham com AIDS elaboraram documentos que servem não só de reivindicação de pautas prioritárias para o movimento, como a ênfase em uma abordagem de direitos humanos, mas textos que refletem sobre um novo caminho a seguir na quinta década da epidemia, que retome lições aprendidas durante mais de 40 anos de luta contra a AIDS. Retomada do conceito de solidariedade na luta contra o estigma, por exemplo, gestão participativa que articule comunidades afetadas, ativistas e gestores, entre outras recomendações.

Além de pensar no futuro, é preciso entender como nos encontramos neste “estado de inércia”. Isso envolve entendermos não somente o contexto global e nacional, como discutido, mas também as dinâmicas políticas do próprio movimento, suas divisões e alianças, e seus efeitos na relação Estado e sociedade civil. Entender como o movimento se enfraquece ou fortalece como resultado de dinâmicas internas e de eventos externos como, por exemplo, a biomedicalização da AIDS, a ascensão da extrema-direita, as mudanças tecnológicas ou a Covid-19, pode oferecer importantes reflexões sobre como um movimento social resiste e se rearticula em contextos diversos.

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