Menu Close
Troupial fêmea cantando
Casal de troupials venezuelanos. Tanto o macho como a fêmea são especialmente coloridos e ambos cantam. Karan Odom, CC BY-ND. Paul Balfe/Flickr, CC BY

Estudos sobre canto de aves mostram que diversidade melhora Ciência

Cientistas costumam ser idealizados como observadores objetivos e imparciais. No entanto, são profissionais com vieses conscientes e inconscientes como qualquer pessoa em outras áreas. Estudando o gorjeio das aves, encontramos um claro exemplo de como as pesquisas podem ser afetadas pelo enfoque de quem trabalha nelas.

Nosso grupo de trabalho pesquisou o canto de fêmeas do troupial venezuelano e seus duetos com machos. Observamos que esta espécie canta em qualquer época do ano com a finalidade de defender seu território. Por outro lado, as fêmeas que estudamos de pássaros azuis orientais, típicos de zonas temperadas, cantam para se comunicar com seus pares nas temporadas de acasalamento.

Mas até finais do século passado, desde a Teoria da Seleção Sexual de Charles Darwin, em 1859, a ciência em geral passou mais de 150 anos acreditando que o canto dos pássaros era uma caraterística masculina. A tese amplamente aceita explicava que os machos produziam uma vocalização longa e complexa durante períodos reprodutivos, enquanto nas fêmeas era raro e anormal emitir sons.

Ao longo do século XXI, a ciência foi comprovando como machos e fêmeas de muitas espécies de aves cantam, especialmente nas regiões tropicais. Em 2014, descobriu-se não somente que o gorjeio das fêmeas é bastante comum, como ainda é provável que os ancestrais de todas as aves cantoras vocalizassem um som feminino.

Saber então como os pássaros machos desenvolveram características vocais deixou de ser o cerne da questão. A pergunta da hora era por que ambos sexos evoluíram adquirindo canto e por que as fêmeas de algumas espécies perderam a vocalização. Revisando a literatura acadêmica de duas décadas sobre o gorjeio das aves, identificamos um fator chave para tal guinada no enfoque das pesquisas.

O estudo final, publicado em 2020, revelou como as mulheres derrubaram o paradigma anterior e revolucionaram a compreensão sobre a evolução dos pássaros. Percebemos que sem elas ou com poucas delas no campus, os avanços seriam muito mais lentos. O gorjeio das aves fêmeas ilustra a falta que a diversidade faz em todos os domínios da ciência.

O dueto de um casal de pássaros troupial em Porto Rico. Karan Odom, CC BY-ND230 KB (download)

Novas vozes levam a novas perspectivas

Tradicionalmente, grande parte da produção de conhecimento sobre o gorjeio das aves foi conduzida por homens brancos de países do hemisfério norte. Pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Alemanha se concentraram principalmente nas aves migratórias que se reproduzem na zona temperada do norte global.

Foi a partir da década de 1990 que novos estudos começaram a contradizer a teoria dominante. Demonstraram que os trabalhos anteriores se limitavam às zonas temperadas do norte, enquanto as fêmeas de muitas espécies nas zonas tropicais são cantoras prolíficas. Surgiram então pesquisas sobre como as aves fêmeas aprendem a cantar, como utilizam as canções, e por que em algumas espécies elas cantam duetos com os companheiros em perfeita sincronia.

Observamos que muitos dos principais artigos sobre o gorjeio das fêmeas nos últimos anos haviam sido escritos por mulheres e nos perguntamos se seria uma tendência. Para verificar se as mulheres eram mais propensas que os homens a estudar o canto das aves de sexo feminino, buscamos “canto fêmea” nos títulos e abstratos da produção acadêmica daquelas duas décadas atrás. Ademais, separamos artigos publicados nas mesmas revistas científicas durante o mesmo período, mas ampliando o foco para “canto das aves”.

Pair of Venezuelan troupials
Male and female troupials. Both sexes are elaborately colored, and both sexes sing. Karan Odom, CC BY-ND

Para cada artigo, identificamos o gênero de todos os autores, incluindo todas as hierarquias. Por exemplo, os referentes ou líderes que coordenam a investigação, os pesquisadores e os assistentes ou alunos.

Começando pelos assistentes, descobrimos que as mulheres assinavam a autoria de 68% dos artigos atentos às aves fêmeas e 44% dos que abordavam o gorjeio dos pássaros em geral. Por conseguinte, as mulheres tinham 24% mais chances de estudar características de fêmeas canoras ao princípio da carreira. Por outro lado, os homens em etapa de iniciação científica tinham 24% menos probabilidades de estudar diferenças vocais das aves por sexo.

Nos cargos intermédios, as pesquisadoras ainda assinavam mais artigos sobre fêmeas que os homens. Na liderança, porém, a presença masculina era maior em ambos grupos. No caso dos estudos que distinguiram o canto feminino, 58% dos autores principais eram homens. Em outras palavras, inclusive os trabalhos com maior incidência feminina tinham menos probabilidade de serem dirigidos por mulheres.

E embora a ornitologia hoje seja um campo relativamente equilibrado em termos de género, é necessário promover mais mulheres às posições de líder, para que possam tomar decisões-chave em linhas de pesquisa, projetos universitários e financiamento.

Fêmea do pássaro cardeal do norte canta ao compasso de companheiros machos em diferentes sintonias.

Perspectivas diversas impulsionam o progresso científico

Um dos principais objetivos do nosso estudo era identificar e visibilizar a diversidade de perspectivas entre pesquisadores de diferentes origens e identidades. O intervalo de tempo analisado precisava abarcar o período de mudança do paradigma científico na virada do século, 20 anos antes.

Por várias razões, seria inviável contatar diretamente muitos autores daquela época. No futuro, permitir que pesquisadores se auto-identifiquem em estudos de gênero e autoria para uma série de áreas poderia produzir dados de gênero mais precisos, além de incluir as demais identidades e expressões, como não binários ou não conformes ao gênero.

De todas formas, nosso estudo sobre o gorjeio das aves oferece evidência contundente sobre como o perfil dos investigadores, de onde vêm e que experiências tiveram, influenciam a ciência que fazem. Grupos de pesquisa mais heterogêneos ampliam o leque de possibilidades, utilizam métodos variados e resolvem problemas com outra visão de mundo.

O gênero é apenas um aspecto da identidade que pode influenciar tópicos, abordagens conceptuais e metodologias específicas em uma vasta gama de disciplinas da ciência. Muitos outros fatores, como raça, etnia, origem geográfica e situação socioeconômica, também afetam a investigação científica.

Situações diárias podem ilustrar os efeitos de pré-conceitos raciais, por exemplo, em áreas que vão desde a Justiça penal até espaços de lazer ao ar livre. Nosso estudo confirma por que é importante conhecer e reconhecer os vieses existentes para melhorar os resultados e o alcance da ciência, da educação e da formação nas universidades do mundo.

Casey Haines liderou a pesquisa na qual se baseia este artigo e que foi excepcionalmente publicada quando ainda era caloura da Faculdade de Ciências Biológicas na Universidade de Maryland, Baltimore County (UMBC), na região nordeste dos Estados Unidos. Michelle Moyer, estudante de doutorado na mesma instituição, colaborou neste trabalho.

This article was originally published in English

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 182,600 academics and researchers from 4,945 institutions.

Register now