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Mulher em manifestação contra a PL 1904 na Av. Paulista, em junho: a quatro meses das eleições municipais, novo ataque aos direitos das mulheres está no centro das estratégias eleitorais de setores da direita. Mas a reação dura da sociedade pode estar fazendo o tiro sair pela culatra. Rubens Suzuki/Ato Press/Folhapress

Feitiço contra o feiticeiro? Maré Verde pela legalização do aborto avança no Brasil

Nas últimas duas semanas, milhares de mulheres ocuparam as ruas e as redes em todo o Brasil para mostrar indignação contra o PL 1904/2024. Como se sabe, o projeto de lei de autoria do deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), integrante da Frente Parlamentar contra o Aborto e em Defesa da Vida, pretende equiparar o aborto realizado depois de 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, com pena de até 20 anos. Isso valeria inclusive nos casos de estupro e de risco à vida da gestante, em que o aborto é permitido por lei desde 1940. A reação contra essa tentativa de retrocesso pode estar sendo muito mais poderosa do que se poderia imaginar.

Desde que a Câmara dos Deputados tentou tocar a tramitação do PL 1904, a chamada “Maré Verde” pela legalização do aborto - que já vinha em ascensão por aqui e em toda a América Latina há anos - ganhou fôlego e vive um novo e importante ciclo de protestos.

A importância dessa reação se reforça com a constatação de que o PL é a ponta de um imenso iceberg. A quatro meses das eleições municipais de 2024, mais uma vez o ataque ao aborto e aos direitos das mulheres está no centro das estratégias eleitorais de setores da direita. Mas engana-se quem vê nisso somente um “meio” para mobilizar bases e atrair votos. É também um fim em si mesmo, uma agenda política intencional de negação de direitos reprodutivos, sexuais e sociais às mulheres e pessoas que gestam.

Para situar a agenda antiaborto como um projeto de largo prazo, é útil reconstituir a sequência recente de acontecimentos que antecedeu a criação do PL 1904. Em dezembro de 2023, a prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, um dos principais do país e um dos poucos a realizar o procedimento em casos de gestações avançadas. Profissionais foram obrigados pela secretaria de saúde a entregar prontuários de pacientes, o que é ilegal e viola o sigilo médico. Alguns deles estão sendo processados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo pelo simples fato de terem tentado cumprir seu dever médico.

Para dirimir esta insegurança jurídica, que leva muitos profissionais a negar o aborto legal em gestações avançadas, o Ministério da Saúde emitiu em fevereiro de 2024 uma nota técnica em que reafirmava que a lei não impõe limite de tempo. A bancada evangélica reagiu e a nota técnica foi revogada menos de 24 horas depois.

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma resolução que proíbe médicos de realizarem a assistolia fetal em casos de gravidez decorrente de estupro.

Esta técnica é tida como a mais segura e ética disponível hoje para a interrupção tardia de gestações, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e pela Rede Médica Pelo Direito de Decidir do Brasil.

Em seguida, o PSOL entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), a ADPF 1141, questionando a constitucionalidade da resolução do CFM. Em 17 de maio, o STF concedeu liminar suspendendo a resolução até que a ADPF seja julgada. No mesmo dia, Sóstenes Cavalcante apresentou o PL 1904, que em menos de um mês teve sua tramitação em regime de urgência aprovada.

O PL é, assim, o resultado mais recente de uma série de movimentos e contramovimentos que envolvem diversos atores, instituições e setores sociais. Materializa uma disputa que não se limita aos últimos eventos ou às próximas eleições, mas está em curso desde pelo menos a Redemocratização do país, além de ser um fenômeno global.

Ao longo deste processo, o campo antiaborto se especializou na produção de pânicos morais (Cohen, 1972) para promover sua bandeira, isto é, investiu na definição do aborto, das mulheres que abortam e dos grupos que defendem o direito ao aborto como uma ameaça aos valores sociais, em especial à “família” e à “criança”. Performar o sofrimento do feto, estrategicamente chamado de “bebê”, é central para a eficácia do pânico moral, pois o qualifica como vítima e pessoa dotada de direitos (Luna, 2014), além de enquadrar o aborto como “crueldade” e “assassinato”. É assim que nos repertórios de protesto do campo antiaborto, abundam imagens de “bebês” ensanguentados e miniaturas de fetos, que incitam emoções de indignação e horror.

Desde que as redes digitais se consolidaram como arena pública de disputa, as imagens se tornaram recursos fundamentais para incitar o engajamento emocional e político das pessoas. Os repertórios de pânico do campo antiaborto, ricos em imagens com alta carga moral e afetiva, encontraram nas redes digitais o ambiente ideal de reprodução e capilarização.

O campo feminista pró-legalização, por sua vez, tem historicamente investido no enquadramento do aborto como “questão de saúde pública”, a partir de marcos do direito, da ciência, da educação e do cuidado. Tais interpretações são elaboradas em linguagens mais institucionais como, por exemplo, na litigância estratégica e em cartilhas, cuja tradução no ambiente veloz e emotivo das redes digitais é um desafio.

Mas quando o PL 1904 foi colocado em regime urgência, os movimentos feministas e de mulheres rapidamente o transformaram numa oportunidade política. As hashtags #CriançaNãoÉMãe e #PLda GravidezInfantil foram as primeiras estratégias discursivas empregadas, com as quais o campo pró-legalização se apropriou da figura da “criança em sofrimento”.

Embora o PL criminalize a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar, as feministas foram bem-sucedidas em enfatizar o impacto para as mais “vulneráveis”: meninas que engravidam em decorrência de estupro e respondem pela maior taxa de abortos legais tardios, quando chegam a acessar este direito. A estratégia permitiu qualificar como vítimas as “crianças estupradas e obrigadas a gestar”, não o feto. Em seguida, #PLdoEstuprador passou a ser utilizada também, associando aos antiaborto o estigma monstruoso do “pedófilo” (Lowenkron, 2015).

Ao jogar o feitiço contra o feiticeiro, a campanha mobilizou públicos para além das bolhas ativistas e acuou apoiadores do PL. Profissionais da saúde, também criminalizados pelo projeto, engrossaram o coro, agregando à campanha a legitimidade e autoridade do campo médico-científico. O sucesso da mobilização se traduziu no aumento da capacidade do campo pró-legalização de disputar na arena pública termos antes capturados pelos setores antiaborto, como “infância”, “vida”, além da própria noção de “estupro”.

Normalmente enunciado como exceção, o estupro foi escancarado como violência cotidiana, cometida e silenciada sobretudo dentro de casa, o que permitiu questionar também o ideal de “família” frequentemente mobilizado pelo campo opositor. Como me disse uma liderança feminista, “fizemos do limão uma limonada”. Bem verde.

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