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Analgésico opioide dezenas de vezes mais forte, viciante e mortal que a heroína, o fentanil começou a ser identificado recentemente em apreeensões e casos de overdose no Brasil. Muitas vezes, os usuários sequer sabiam que estavam consumindo a droga. AP Photo/Keith Srakocic

Fentanil: desviado do sistema hospitalar, opioide poderosíssimo já é encontrado nas ruas brasileiras, misturado a outras drogas

A crise dos opioides nos Estados Unidos, marcada por relatos de overdoses e imagens impactantes de consumo aberto de drogas, em especial do fentanil, tem despertado a atenção global para o grave problema da dependência.

Em abril de 2023, a apreensão de frascos de fentanil no estado do Espírito Santo provocou sérias preocupações entre as autoridades brasileiras, especialmente porque havia, até então, poucos registros de uso ilegal desta substância no país.

Desde então, identificaram-se alguns padrões no potencial abuso de fentanil no Brasil, destacando a necessidade urgente de vigilância e ações preventivas diante do crescente risco à saúde pública.

O fentanil é um opioide sintético extremamente potente, utilizado clinicamente para alívio da dor, mas associado a riscos significativos de overdose quando usado indevidamente ou de forma abusiva. Ao contrário dos Estados Unidos, onde a dependência de opioides se tornou um problema de saúde pública, os usuários brasileiros muitas vezes desconhecem que estão consumindo fentanil, pois a substância é frequentemente combinada com outras drogas.

O abuso de fentanil no Brasil

Neste ano, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) detectou a presença de fentanil em amostras de sangue de usuários na região de Campinas. Surpreendentemente, ao serem atendidos, estes indivíduos não tinham consciência de terem ingerido a substância, que possivelmente foi utilizada na mistura da cocaína e do K2, uma designação genérica de substâncias sintéticas, que inclui canabinoides sintéticos.

Um caso semelhante ocorreu um ano antes da apreensão de fentanil no Espírito Santo, quando um jovem foi atendido no Hospital Estadual de Urgência e Emergência de Guarapari, no mesmo estado. O paciente apresentava um grave ferimento e uma elevada dosagem do anestésico no sangue, possivelmente também misturado à cocaína. Além disso, existem suspeitas de uso de fentanil nos cigarros eletrônicos e como substância para dopagem em golpes conhecidos como “Boa noite, Cinderela”.

Outra importante característica do uso do fentanil no Brasil é que não há registros de sua síntese ilegal no país. Pelo contrário, a substância é desviada do uso hospitalar, uma vez que é um anestésico amplamente utilizado. No caso da apreensão no Espírito Santo, por exemplo, a polícia constatou que se tratava de um produto desviado durante o transporte, em alguma etapa do percurso entre uma indústria farmacêutica em Minas Gerais e os hospitais.

Normas e controle existentes

É relevante notar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mantém um rigoroso controle sobre o fentanil. Os prescritores, por exemplo, devem estar cadastrados na vigilância sanitária local, com registros válidos por 30 dias e controle realizado por meio de talonários de Notificação de Receita tipo A. Nos hospitais, a responsabilidade pelo controle recai sobre as unidades de saúde, que devem armazenar a substância em local exclusivo, com acesso restrito e monitorado, em conformidade com a normativa da Anvisa RDC 757/2022.

A Anvisa também exerce um controle sobre a entrada dos precursores utilizados na fabricação do fentanil no Brasil, um procedimento mais rigoroso em comparação com as práticas adotadas nos Estados Unidos e na Europa. As indústrias brasileiras responsáveis pela síntese do fentanil importam a matéria-prima, como 4-AP, 1-boc-4-AP e Norfentanil, todos listados na categoria D1 como substâncias precursoras de entorpecentes ou psicotrópicos, conforme estipulado na recente atualização normativa RDC 784/2023.

O processo de importação destes insumos pelas indústrias também segue procedimentos rigorosos. Cada embarque está sujeito a uma cota de importação, sendo necessário obter autorização prévia da agência reguladora e passar por fiscalização nos aeroportos. Além disso, as empresas do setor devem enviar uma Relação Mensal de Vendas à Anvisa para fins de monitoramento. Estas medidas buscam garantir um controle sobre a produção, importação e distribuição de fentanil.

Por fim, é essencial destacar que o Brasil opera com um sistema de segurança descentralizado, caracterizado pela ausência de um registro unificado de apreensões. Esta descentralização representa um desafio significativo para o monitoramento eficaz das apreensões em todo o país. Alguns eventos relevantes no Brasil ocorreram em 2015, no estado de São Paulo, quando 990 ampolas da substância foram apreendidas. Em outro episódio, em 2019, também em São Paulo, houve o desvio de 2000 ampolas da rede hospitalar. Com a implementação do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR), a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) visa centralizar os dados de apreensões de drogas, o que poderá proporcionar uma melhor compreensão dos casos e medidas de controle mais efetivas.

Recomendações para políticas públicas e seus desafios

A partir das características de abuso de fentanil no Brasil, faz-se necessária a reflexão sobre propostas de saúde pública e os desafios associados à sua implementação. Estas políticas devem abordar a prevenção, bem como estratégias para fortalecer a fiscalização e regulamentação do fentanil no país.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, uma das agências de vigilância em saúde mais respeitadas no mundo, recomenda o uso das Tiras de Teste de Fentanil (Fentanyl Test Strips em inglês) como uma estratégia de baixo custo para prevenção de overdose e redução de danos entre os usuários de drogas. Similar aos testes rápidos adquiridos em farmácias, estas tiras de papel são capazes de detectar a presença de fentanil em suas diferentes formas - comprimidos, pó ou injetáveis -, e em diversos tipos de droga, como a cocaína. Esta abordagem permite que o usuário certifique-se da presença do fentanil em uma substância de origem desconhecida, possibilitando a adoção de medidas para mitigar o risco de overdose ou ajustar seu comportamento de uso.

Nos Estados Unidos e em outros países, as Tiras de Teste de Fentanil são distribuídas gratuitamente por organizações de redução de danos, com evidência sólida de eficácia na prevenção de overdoses. Em cenários onde a presença de fentanil é incerta, como no caso do Brasil, estes testes permitem aos usuários evitar serem enganados pelos traficantes. Entretanto, o desafio para a implementação destas ações no Brasil reside no cenário político polarizado, onde iniciativas voltadas para a proteção da saúde dos usuários que não desejam ou não conseguem interromper o uso de drogas são desacreditadas ou interpretadas equivocadamente por alguns setores conservadores da sociedade e da política.

Outra medida é o uso da Naloxona ou Narcan®. Este é um medicamento capaz de reverter rapidamente uma overdose ao bloquear os efeitos dos opioides, funcionando como um antídoto. Embora, na maioria dos países, o acesso à Naloxona seja restrito a profissionais de saúde, alguns, como Austrália, França, Itália e Reino Unido, implementaram programas de “Leva para Casa Naloxona”, nos quais oferecem treinamento para situações de overdose e distribuem Naloxona diretamente aos usuários.

Existem evidências de que estas ações reduzem a mortalidade entre os abusadores de opioides. A implementação de treinamento e distribuição da Naloxona para as equipes de emergência do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e na atenção primária em áreas de risco, como algumas cidades no Espírito Santo e São Paulo, poderia prevenir casos de overdose. Atualmente, estimar estes casos no Brasil é desafiador devido à falta de conhecimento dos usuários e profissionais de saúde em relação ao fentanil. Outras limitações para a adoção desta estratégia incluem os custos associados e as restrições legais, visto que a Naloxona requer prescrição médica.

Por fim, é necessário investir em ações de segurança pública e vigilância sanitária. É imperativo capacitar as forças policiais para identificar o fentanil, assim como outras substâncias psicoativas emergentes. A experiência no Espírito Santo, onde os policiais foram treinados pela Administração de Fiscalização de Drogas (DEA, sigla em inglês) dos Estados Unidos, destaca a importância deste conhecimento especializado.

Da mesma forma, fortalecer a vigilância sanitária é crucial. Reforçar a vigilância, especialmente no que se refere ao desvio de substâncias de hospitais e clínicas, deve ser uma prioridade, assim como limitar campanhas promocionais direcionadas aos profissionais de saúde que possam sugerir resultados falsos, induzindo ao abuso de opioides, principalmente no ambiente ambulatorial.

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