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Vista da Pedra da Gávea, a partir de uma trilha da Floresta da Tijuca: grande parte dos caminhos do atual Parque Nacional foram feitos a partir da chegada da corte de D. João VI, em 1808. Foto de Halley Pacheco de Oliveira, CC BY-NC

Floresta da Tijuca: trilhas do Parque Nacional mais visitado do Brasil têm a marca dos escravizados

Este texto foi atualizado - com ajustes de informação e nova referência bibliográfica - em 04/03/2024.

Em 2023, o Parque Nacional da Tijuca bateu mais um recorde de visitação, chegando a mais de quatro milhões de visitantes. A população carioca está cada vez mais presente no interior do parque, fruto de uma crescente sensibilidade social ligada ao bem-estar em ambientes naturais.

Nesse cenário, percebe-se que a caminhada em trilhas ganha muito espaço dentro das unidades de conservação em todo o país.

Cariocas e viajantes de todo o mundo acessam diferentes atrações turísticas através de trilhas, como a Pedra da Gávea, Pedra Bonita, Vista Chinesa, Pico da Tijuca, e é claro, o Cristo Redentor – símbolo da cidade e do país –, tornando o parque nacional o mais visitado do Brasil.

Caminho com calçamento de pedra na trilha da Pedra da Gávea, uma das mais populares do Parque Nacional da Tijuca: trabalho feito pela mão de obra escravizada empregada no Rio até o final do século XIX. Foto do autor, Author provided (no reuse)

No entanto, os frequentadores do parque não sabem que ao transitarem por essas trilhas estão caminhando sobre trabalho humano. Trabalho este que, em muitos casos, foi feito através da mão de obra escravizada, empregada no Rio de Janeiro até o final do século XIX.

É interessante notar que, embora tenha tido um papel muito importante na história e no processo de transformação do Maciço da Tijuca e do Rio de Janeiro, essa mão de obra esteja invisível na historiografia tradicional.

A história das trilhas do Parque Nacional da Tijuca

Os habitantes originários da Guanabara, indígenas do grupo Tupinambá, viviam da pesca, da caça e do roçado de mandioca e, embora tivessem domínio de tecnologia agrícola relativamente desenvolvida, não parecem ter chegado a habitar as áreas do Parque Nacional da Tijuca, preferindo organizar suas roças onde a vegetação se apresentava mais rala.

Mesmo assim, faziam incursões esporádicas à mata, para caça e coleta de essências e frutos silvestres. Entretanto, podemos dizer que o Maciço da Tijuca permaneceu pouco explorado até meados do século XVII e, consequentemente, poucos caminhos foram abertos.

O início – ainda que lento – da abertura de novos caminhos se deu a partir da expulsão dos franceses, em 1576, e a consequente ocupação da terra pelos portugueses, que criaria as condições para as primeiras explorações da floresta presente no Maciço da Tijuca.

Com a concessão de novas sesmarias, o raio de ocupação da cidade foi aumentando gradativamente, obrigando o colono a abrir veredas que fizessem a conexão com as novas áreas exploradas.

A ocupação efetiva, e consequentemente a necessidade por novas rotas, se deu a partir do século XVII, com o começo das atividades da produção canavieira no entorno do maciço. Apesar de o plantio da cana-de-açúcar ter sido realizado em sua maioria em áreas fora do Maciço, as suas matas começaram a ser requisitadas para extração de madeira que seria utilizada nos engenhos de cana-de-açúcar na forma de lenha e carvão.

A transição do cultivo da cana-de-açúcar para o café se deu gradualmente desde a segunda metade do século XVIII. A partir de 1760, as primeiras mudas de café foram trazidas do Pará e Maranhão e começaram a ser introduzidas nas fazendas do Rio de Janeiro.

Ao contrário do que aconteceu nesses estados, o café se aclimatou muito bem no Maciço da Tijuca. As produções de café e carvão tinham certa ligação, uma vez que a primeira tarefa a ser ordenada pelo proprietário da terra era a transformação da mata em carvão, para vender na cidade, plantando depois o seu cafezal no terreno já limpo.

Colheita de café na Tijuca, quadro de 1835, pintado por Johann Moritz Rugendas. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, CC BY

Com a chegada da Corte, em 1808, o ritmo de transformação das paisagens do Rio de Janeiro se intensificou, tendo como uma das consequências imediatas o aumento da população residente na cidade em um curto período. Estima-se que cerca de 15.000 pessoas tenham desembarcado nos portos do Rio de Janeiro em poucos dias.

Este súbito crescimento populacional acarretou num aumento da demanda por alimentos e energia (lenha e carvão), sendo este último retirado exclusivamente das florestas.

Ao longo de todo o século XIX, a área que hoje é o Parque Nacional da Tijuca foi ocupada por diplomatas, nobres e políticos estrangeiros, alguns deles com conhecimento e prática da cafeicultura. Dessa maneira, as montanhas do Maciço da Tijuca passaram a abrigar muitos europeus em busca de um novo empreendimento com a produção do café, ou apenas interessados em se estabelecer em um local com clima mais ameno.

Na virada do século XVIII para o XIX, novas trilhas e caminhos começam a ser abertos, enquanto que outros traçados preexistentes são reaproveitados. Neste momento, as estreitas e íngremes trilhas começam a não atender às necessidades dos produtores de café do Maciço da Tijuca, fazendo com que o melhoramento desses caminhos fosse algo imprescindível.

Muitas das trilhas e caminhos que hoje são encontrados no maciço têm sua conformação atual relacionada a este momento, mesmo que alguns destes trajetos não tenham sido necessariamente abertos neste período.

Como bem descreve o diplomata, ex-diretor do Parque Nacional da Tijuca, fundador da trilha Transcarioca e autor do livro Trilhas do Rio, Pedro da Cunha e Menezes:

“Primeiro buscou-se suavizar o traçado das trilhas, de modo a facilitar a passagem dos animais quando descessem onerados pelo peso dos balaios cheios de café. Depois, optou-se por calçar com pedras os trechos mais difíceis, procurando evitar que as bestas escorregassem.

Onde o gradiente fosse muito inclinado, cortou-se a encosta em enfadonhos ziguezagues que, se por um lado aumentavam a duração da jornada, por outro garantiam a integridade da carga e do animal.

Por fim, construíram-se pontes de pedras, geralmente cimentadas com óleo de baleia, sobre os córregos mais caudalosos ou de travessia perigosa. Nesse contexto, as trilhas descritas pelos "viajantes” não eram mais aquelas singelas e pouco utilizadas picadas que, no início da colonização, servia sobretudo à movimentação das pessoas"


Todas essas melhorias acima descritas ainda são visíveis na paisagem.

As trilhas Foram elementos chave na distribuição de mercadorias produzidas no maciço, sendo marcadas pelo intenso tráfego de pessoas e animais. Dessa maneira, aos poucos os espaços foram sendo preenchidos por todo o Maciço da Tijuca, seja com a utilização da vegetação para obtenção de lenha e carvão, ou com o plantio do café.

O quadro de Debret mostra o transporte de carvão no lombo de mulas no Rio de Janeiro, na obra de 1822. Fonte: Voyage pittoresque et historique au Brésil

As únicas áreas do Maciço da Tijuca que seguiram menos alteradas foram aquelas de difícil acesso. Apesar de atualmente encontrarmos alguns indivíduos arbóreos remanescentes na floresta, estes encontram-se isolados e na grande maioria das vezes próximos a antigas carvoarias, que evidenciam o uso pretérito da floresta como fonte energética.

O início da decadência do café no Maciço da Tijuca se deu entre as décadas de 1840 e 1850, quando as principais fazendas de café já se encontravam no Vale do Paraíba, aumentando a concorrência com a produção carioca.

Assim, ao longo do século XIX, as plantações foram sendo abandonadas e as nascentes d’água, desprotegidas, começaram a secar. Ao mesmo tempo, a população do Rio de Janeiro, que continuava a aumentar vertiginosamente, passou a sofrer com a falta d’água.

O café começava a cobrar o seu preço. Com a retirada das florestas, aos poucos o volume d’água dos rios começou a diminuir, afetando diretamente a população carioca. Nos anos de 1824, 1829, 1833 e 1844, a cidade passou por períodos de seca muito severa, trazendo à tona a importância da proteção dos mananciais que forneciam água à cidade.

É bem verdade que desde 1817 já vinham sendo adotadas medidas paliativas para proteção dos corpos hídricos, como por exemplo cercar as nascentes das áreas altas do maciço. No entanto, somente a partir de 1861 é que medidas mais significativas começam a ser tomadas com o intuito de reestabelecer o volume d’água dos corpos hídricos e, consequentemente, melhorar o abastecimento de água da cidade.

Em 11 de dezembro daquele ano, ficaram encarregados de trabalhar no reflorestamento das matas da Tijuca e das Paineiras o Major Manuel Gomes Archer e Thomaz Nogueira da Gama, respectivamente.

O reflorestamento começou em 4 de janeiro de 1862, sendo realizado até 1894, exclusivamente no que hoje é o Setor Floresta da Tijuca. Original e inovador, o projeto de reflorestamento da Floresta da Tijuca é hoje reconhecido mundialmente pelo seu sucesso.

Com o surgimento de vias pavimentadas e com melhor infraestrutura, muitos desses caminhos caíram em desuso. Rotas mais curtas, mais seguras ou mais lucrativas foram razões que ao longo do tempo contribuíram para que um caminho tenha sido deixado de lado.

Com relação a caminhos inseridos em áreas declivosas e de mata fechada, como no caso do Maciço da Tijuca, inovações tecnológicas foram tornando pouco a pouco o deslocamento por trilhas e caminhos de chão na mata cada vez menos oportuno.

A inauguração de túneis, viadutos e, é claro, o asfaltamento de vias mais largas foram, ao longo do tempo, verdadeiras certidões de óbito de diferentes caminhos que não apresentavam tais melhorias. Caminhos que tiveram tráfego intenso de pessoas e animais de carga durante muito tempo podem perder seu propósito e deixar de serem usados em poucos anos.

Trabalho humano

A abertura e o posterior calçamento de muitos dos caminhos hoje presentes no PNT são exemplo do trabalho de populações escravizadas, ex-escravizadas e descendentes destes. Essa atividade só foi possível a partir de um investimento significativo de trabalho humano, pois devemos lembrar que a mecanização do trabalho era ainda muito incipiente até meados do século XX.

Abertos à base da enxada, o gasto de energia era enorme, principalmente em ambientes inclinados e florestados como nas matas do Maciço da Tijuca. Para ilustrar parte desse esforço, estima-se que a cada 100 m de estrada abertos tenham sido movimentados pelo menos cerca de 310 m³ de solo, o que equivale à carga de 34 caminhões modernos de 9 m³.

Embora as mulas fossem capazes de transitar em caminhos estreitos e declivosos, esses animais também tinham dificuldade em superar determinados trechos, obrigando os trabalhadores a fazerem uma série de intervenções. Valas de escoamento, contenções e principalmente calçamento com pedras nas seções mais acidentadas do trajeto eram fundamentais.

Embora necessários, trechos calçados de pedra encontrados atualmente também atestam um imenso esforço, novamente concentrado principalmente na mão de obra escravizada. Em mais uma estimativa, calcula-se que a cada quilômetro calçado de pedra tenham sido movimentados cerca de 470 toneladas de rocha, o que equivale ao peso de 500 Fiat Palio Fire 1.0 (modelo 2018).

Esses caminhos com calçamento de pedra são uma herança, uma marca de trabalho e esforço físico de pessoas invisibilizadas. Dessa maneira, a tarefa de contar a história desses caminhos nos leva ao movimento de trazer à luz esses personagens que tanto influenciaram no processo de transformação do Maciço da Tijuca e da cidade.

Esse esforço permitiu que as estreitas e íngremes trilhas do Maciço da Tijuca se transformaram em rotas movimentadas para escoar os diferentes produtos que dele vinham. De singelas e pouco utilizadas vias do início da colonização, os caminhos passaram à posição de elemento chave do funcionamento da cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII em diante.

As trilhas de hoje e as infraestruturas relacionadas à elas ilustram essas transformações, representando a materialidade de parte fundamental da história do Rio de Janeiro.

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