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Balão de carvão prestes a iniciar seu processo de combustão abafada. Ilustração de Percy Lau, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tipos e aspectos do Brasil: excertos da Revista Brasileira de Geografia

Florestas urbanas do Rio de Janeiro já tiveram mais de 1.500 carvoarias no passado

Carvão também é história. A lenha sempre acompanhou a trajetória humana como fonte energética de primeira necessidade. A transformação em carvão possibilita um aumento do poder calorífico da madeira, com redução de peso e massa. Isso faz com que seja uma fonte energética mais eficiente e que pode ser transportada a longas distâncias.

O poder calorífico do carvão vegetal por unidade de peso é 3,1 vezes maior do que o da lenha. Ao contrário do petróleo, o carvão pode ser produzido localmente e trata-se de uma fonte energética cujo custo de produção é composto quase que exclusivamente do trabalho braçal investido nele.

No Rio de Janeiro do passado, o carvão vegetal confeccionado nas florestas que cercam a cidade tinha como destino desde os fogões domésticos até os fornos industriais, sendo requerido também nas locomotivas ou em vendas que produziam bens de metal que necessitavam de calor para serem fabricados.

Por conta desses variados usos e de sua alta eficiência, o carvão vegetal foi a principal fonte energética para o Rio de Janeiro até o início do século XX. Nos últimos anos, pesquisadores do Laboratório de Biogeografia e Ecologia Histórica da PUC-Rio têm se dedicado ao resgate da história dos carvoeiros nas florestas de Mata Atlântica cariocas. A partir da observação dos platôs abertos e dos vestígios de carvão no solo, já fomos capazes de identificar mais de 1.500 antigas áreas de produção.

Quem eram os carvoeiros

O início do século XIX foi um período de intensas transformações sociais no Brasil. A população livre, comprimida entre os dois extremos da escala social (os proprietários e os escravizados) possuía ocupações incertas e aleatórias, ou até ocupação nenhuma. Dessa forma, o trabalho era guiado por demandas sociais. Apesar da indústria ainda estar em gestação, as vilas e cidades já eram bastante vivas e demandavam energia.

Nesse momento, assim como ao longo deste século, o carvão vegetal era a principal fonte energética. Com isso, as matas eram fonte abundante de lenha para a produção do carvão, processo que dependia do emprego de intenso trabalho humano. Sendo assim, o comércio do carvão era uma brecha possível para o acesso à renda da população livre e pobre. Mas quem eram essas pessoas? De onde vieram?

Muito possivelmente a fabricação de carvão era um trabalho para escravizados alforriados ou pequenos agricultores e que não faziam parte do sistema produtivo dos engenhos de cana-de-açúcar. Mesmo antes da abolição da escravatura no Brasil, em 1888, os escravizados foram aos poucos sendo colocados à parte das atividades produtivas. Com a abolição, passaram a constituir um grande contingente de desempregados, sem recursos para a sobrevivência.

Carvão sendo transportado no lombo de mulas no Rio de Janeiro em 1822. Ilustração de Jean Baptiste Debret. em Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. Paris: Firmin Dibot Frères, 1834.

Assim, o carvão era uma atividade que permitia uma relativa independência. Isso faz sentido: a quantidade de insumos utilizada na produção de carvão era mínima, com ferramentas muito básicas e que poderiam ser produzidas pelos próprios carvoeiros. Até mesmo para embalá-lo, pelo menos no século XIX, eram utilizadas fibras naturais (bambu e cipós).

Invisibilidade Social

Existem poucas informações disponíveis sobre os carvoeiros, principalmente pelo passado escravista brasileiro, que contribuiu para a ocultação desse grupo social. Sua marginalização está baseada em ideias e associações profundamente preconceituosas em relação à cor da pele dos trabalhadores, à sujeira atribuída aos mesmos no manuseio do carvão e ao seu lugar de trabalho.

A invisibilidade desse grupo e de seu trabalho é resultado do processo de homogeneização de povos africanos com diferentes fenótipos, línguas, costumes, religiões, etc., sob o termo negro, além da associação deste com a palavra escravo, tratados basicamente como sinônimos. Além disso, os próprios carvoeiros se mantiveram ocultos por conta de imposições diversas, como proibições de derrubadas de árvores ou invasões de áreas privadas, por exemplo.

Como era produzido o carvão

Os carvoeiros do Maciço da Pedra Branca. Ilustração de Armando Magalhães Corrêa em O Sertão Carioca. 167 ed. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, 1936

Apesar do intenso trabalho, apenas três ferramentas eram necessárias para a produção do carvão: uma enxada, um machado e uma pederneira (espécie de isqueiro). A oferta de lenha estava garantida nas florestas do Rio de Janeiro, sendo extraída com o machado das próprias matas onde o carvão era produzido. A enxada era usada para aplainar e limpar os locais de produção nas encostas, onde eram abertos platôs de cerca de 45m² no interior da floresta. Geralmente, estes platôs estavam em áreas mais baixas do que o local de extração da lenha, uma vez que menos energia é demandada para transportar a madeira ladeira abaixo. Era então nessas áreas planas que os balões de carvão eram construídos.

Esquema da disposição das carvoarias no relevo e seus respectivos platôs. Elaborado pelo autor

O balão de carvão é um cone de lenha empilhada e revestido de barro, atingindo cerca de 6 metros de circunferência e aproximadamente 3,5 metros de altura. Atear fogo na lenha dentro desses balões permitia a combustão abafada, fazendo com que a madeira fosse lentamente convertida em carvão, evitando que a mesma fosse totalmente queimada.

Carvoarias encontradas na cidade do Rio de Janeiro

Entre 2014 e 2023, o Laboratório de Biogeografia e Ecologia Histórica da PUC identificou 377 antigas carvoarias no Maciço da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. Estas são somadas às 1.176 carvoarias encontradas no Maciço da Pedra Branca, em esforços liderados pelo Professor Rogério Ribeiro de Oliveira, que nas últimas duas décadas iniciou este trabalho de trazer à tona estes personagens invisibilizados e abrindo novas narrativas para se interpretar a história ambiental da Mata Atlântica.

Mapa dos vestígios de carvoarias encontradas nos maciços da Tijuca e Pedra Branca. Solórzano, Alexandro, Ana Brasil-Machado, and Rogério Ribeiro Oliveira. Royal Society Open Science 8, no. 6 (2021): 1–21.

Apesar de ser um grupo invisibilizado, os carvoeiros desempenharam um relevante papel no funcionamento da sociedade do Rio de Janeiro e outras cidades e vilas do Sudeste do Brasil. Extremamente ocultos na historiografia tradicional, os vestígios materiais que esses personagens deixaram estão escondidos em meio às densas florestas da Mata Atlântica, muitas delas em meio a grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro. A importância de contar a história desse grupo social extremamente marginalizado está no reconhecimento do trabalho oculto deles, que transformou paisagens naturais em paisagens culturais.

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