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Estudo pioneiro liderado por pesquisadoras da UFRJ observou pela primeira vez uma transição anormal no processo fisiológico da proteína que tem ligação estreita com o mal da vaca louca e outras desordens do sistema nervoso. Unsplash

Gotículas da proteína príon: a chave para terapias inovadoras contra doenças neurodegenerativas

Pela primeira vez, a ciência conseguiu observar uma transição aberrante em um processo fisiológico de uma proteína conhecida como príon. Esta proteína tem uma ligação estreita com doenças como o mal da vaca louca ou outras desordens do sistema nervoso. O resultado do estudo contribui para entender a biologia da proteína príon na saúde e na doença.

O fenômeno visto foi a passagem errônea de um estado líquido para o sólido. No estudo, identificou-se que a príon forma pequenas gotas fluidas como líquidos em células saudáveis, os chamados condensados biomoleculares. Porém, em condição de estresse celular, os condensados tornam-se aberrantes, perdendo a característica dinâmica das gotículas e adquirindo a forma sólida parecida com aglomerados gelatinosos. Traduzindo: a gota líquida passa a adquirir características de gel e, posteriormente, se solidifica em um fenômeno incorreto. Esse estado sólido é irreversível e parece se relacionar com certas doenças.

Os condensados aberrantes descobertos abrem caminho fecundo para a melhor compreensão das doenças neurodegenerativas provocadas por essa proteína e, no futuro, podem ser alvos terapêuticos para prevenir a neurodegeneração. A partir dessa pesquisa, acreditamos que os dados observados contribuirão com a ciência internacional na busca mais certeira por compostos direcionados ao bloqueio dessa conversão errônea da fase líquida para sólida.

Painel superior: A proteína príon isolada forma condensados líquidos na presença de íons cobre visualizados no microscópio como gotículas (vermelho). Em resposta à adição de cobre, a proteína príon forma gotículas líquidas na superfície celular (amarelo) que controlam os papéis benéficos do cobre no ambiente celular. Painel inferior: Porém, na presença de agentes estressores como cobre e peróxido de hidrogênio, a proteína príon isolada forma condensados aberrantes, e em células se deposita nas membranas acarretando no prejuízo da sobrevida das células nervosas. Elaborado pelas autoras

Pioneirismo

A proteína príon foi descrita, pela primeira vez, pelo neurologista americano Stanley Prusiner, da Universidade da Califórnia, em 1982. Sua hipótese de que uma proteína poderia se tornar infecciosa e causar doenças foi recebida, inicialmente, com ceticismo pela comunidade científica. Posteriormente, passou a ser amplamente aceita e acabou lhe rendendo o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, de 1997.

A atual pesquisa contou com três mulheres também pioneiras na área das pesquisas com príons, e o relato dos achados foi publicado, neste mês de novembro, em artigo no prestigioso periódico Science Advances. Em decorrência das observações descritas, acreditamos que nosso estudo insere mais uma peça nesse intrincado quebra-cabeça sobre a proteína príon anormal.

Nós, Mariana Amaral (primeira autora) e Yraima Cordeiro (autora sênior), ambas pesquisadoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tivemos o pioneirismo nas pesquisas da América Latina com príons e os chamados condensados proteicos. Nesse campo, lideramos diversos trabalhos sobre separação de fase líquido-líquido de biomoléculas. Além disso, temos a primazia da descrição da transição anormal da proteína príon diante de certos cofatores. Estes cofatores são macromoléculas biológicas com carga negativa em ambiente celular como ácidos nucleicos.

Outra colaboradora do estudo é a professora alemã Susanne Wegmann, precursora na descrição dos condensados da proteína Tau em neurônios. Esta proteína é abundante em neurônios e pode formar gotas líquidas em células saudáveis, que é capaz de evoluir para um estado sólido, possivelmente relacionado à doença de Alzheimer.

É importante explicar que separação de fase líquido-líquido é um processo fisiológico que ocorre em células vivas e que permite a concentração de macromoléculas em uma determinada região sem a necessidade de separação do ambiente externo por uma membrana lipídica. E este é um processo reversível e dinâmico com papel crucial para o bom funcionamento do ambiente celular. E o que relatamos neste artigo é sequestro de íons cobre em excesso junto ao estresse oxidativo, que é característico do envelhecimento, sugerindo uma conversão anormal, com impacto no desenvolvimento de doenças.

Pesquisadores de diferentes nacionalidades têm estudado a ligação do cobre à proteína príon há mais de 20 anos, levantando questões que apontam que a príon sequestra íons cobre em excesso, protegendo as células do sistema nervoso do cobre livre, que é reativo.

No trabalho publicado agora na Science Advances, mostramos que a proteína príon ligada a íons cobre forma gotas líquidas na interface celular, ou seja, nos pontos de comunicação entre uma célula e sua vizinha. O mecanismo de sequestro de cobre realizado pela proteína príon ainda permanecia um enigma até a divulgação deste estudo.

Os condensados aberrantes descobertos abrem caminho fecundo para a melhor compreensão das doenças neurodegenerativas provocadas por essa proteína e, no futuro, podem ser alvos terapêuticos para prevenir a neurodegeneração. Provida por Mariana Amaral. Criado com imagens do BioRender.com

Nós descobrimos que a proteína príon age como um tampão de cobre via separação de fase líquido-líquido, protegendo as células do excesso de cobre pela formação de condensados na membrana. Porém, quando há contato excessivo com cobre e estresse oxidativo, condensados sólidos, contendo a proteína príon agregada são formados, levando a crer na morte neuronal.

As observações só foram viabilizadas devido a técnicas biofísicas avançadas, incluindo espectroscopia de raios-X de correlação de fótons usando a nova fonte de luz Síncrotron brasileira, do Sirius, no Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais. Além da recuperação de fluorescência após fotobranqueamento em células vivas, experimento realizado na Unidade Avançada de Bioimageamento da Charité-Universitätsmedizin, Universidade de Medicina de Berlim.

Vale destacar ainda o apoio financeiro que recebemos neste estudo. A pesquisa só foi viabilizada em virtude dos editais da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, além do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Sociedade Alemã de Pesquisa e Associação Helmholtz e Fundação Hertie.

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