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História da Ciência: Na dança das vacinas, a música sempre foi a matemática

Menina tem o braço medido por uma régua
Números e agulhas sempre andando juntos: o uso de modelos matemáticos para estudar a vacinação é uma prática que começa ainda antes da descoberta das primeiras vacinas. AP Photo/John Amis

Escrevo no momento em que recebi a informação de que o prêmio Nobel de Medicina foi atribuído a dois dos precursores das vacinas de RNA. É difícil imaginar qualquer desenvolvimento científico neste nível onde a matemática não apareça.

A modelação da produção de proteínas a partir das codificações do DNA (e por via do RNA) consome grande parte do tempo dos supercomputadores que são usados atualmente pra esse tipo de estudo. Não podemos experimentar todas as possibilidades in vivo. Portanto, sermos capazes de selecionar o que realmente vale a pena levar para o laboratório diminui muito o custo das experiência - e também a necessidade de se usar animais vivos nos experimentos.

Mas é muito interessante notar que o uso de modelos matemáticos para estudar os processos de vacinação não é nenhuma novidade. Pelo contrário, trata-se de uma prática que tem uma longa história. E ela começa ainda antes das primeiras vacinas.

Antes das vacinas, a variolação

Vale a pena lembrar a história de Mary Wortley Montagu, que passou parte de sua vida na Turquia, no século XVIII, onde conheceu a chamada variolação, uma técnica que causava a morte de cerca de 1% de quem era a ela submetida.

Essa técnica consistia em inocular num paciente saudável uma pequena amostra do vírus da varíola. Quem a ele sobrevivia desenvolvia uma imunidade permanente ao que foi uma das piores doenças da história da humanidade. Digo “foi” pois já está extinta, justamente devido a uma vacina efetiva, ofertada num esforço coletivo de vacinação sem precedentes no mundo até então.

Voltemos à variolação: é importante notar que essa técnica não é a mesma coisa que a vacina, pois implicava na inoculação da própria doença. Em 1766, o matemático Daniel Bernoulli, de uma famosa família de cientistas, resolveu estudar se a variolação em massa poderia resultar no controle da varíola na França.

Ele publicou um pequeno artigo em que mostrava esta possibilidade. As suas ideias não foram implementadas pois a vacina contra a varíola desenvolvida 30 anos depois por Edward Jenner não continha o vírus da doença. A técnica, muito mais segura, acabou por tornar obsoleta a variolação.

O advento dos modelos compartimentais

Mas as ideias de Bernoulli reapareceram cerca de 150 anos depois: Ronald Ross e Hilda Hudson, por um lado, e William Kermack e Andrew McKendrick, por outro, estudaram essencialmente o mesmo problema: como modelar a propagação da malária na Índia, a época colônia britânica.

Apesar da malária ser transmitida por um mosquito, e portanto sendo muito diferente da varíola, o modelo que estes dois pares de pesquisadores propuseram tinha semelhanças com o modelo estudado por Bernoulli. Eles criaram o que hoje em dia conhecemos como “modelos compartimentais”.

Neles, a população em estudo é divida numa certa quantidade de compartimentos hipotéticos, e diferentes grupos de pessoas com determinadas características são relacionados a um destes compartimentos.

No caso mais simples de estudo, utilizamos os compartimentos dos Suscetíveis (os que podem ficar doentes), dos Infecciosos (os que podem transmitir a doença) e os Removidos (que já não mais interessam para a dinâmica da doença: morreram, gozam de imunidade, ou foram vacinados). Feito isto, modela-se as probabilidades de passagem entre estes compartimentos. O gráfico abaixo ilustra o funcionamento deste estudo:

Modelo compartimental básico, incluindo diversos fenômenos relevantes. Transformar este esquema em equações, resolvê-las, calibrar os parâmetros pode ajudar muito a planejar a reposta a futuras epidemias.

A primeira conclusão a que chegaram é que não era necessário acabar com todos os mosquitos para erradicar a malária. Bastava diminuir a sua quantidade até abaixo de um certo valor. Se a picada se tornasse rara, um único indivíduo Infeccioso (I) contaminaria em média menos do que uma outra única pessoa, isto é sua taxa de infecção seria menor que 1, fazendo com que a doença desaparecesse sozinha.

Só isso já foi um grande alento no controle de epidemias, pois eliminar todos os mosquitos é fora de questão. Não apenas pela dificuldade em realizar essa tarefa (até mesmo nos dias de hoje), mas também por todas as consequências ecológicas que uma eliminação desse grau pode provocar.

Dois conceitos matemáticos na raiz das vacinas

Como consequência destes trabalhos apareceram dois conceitos que são, na sua essência, matemáticos: o número reprodutivo básico, também chamado de R0 (lê-se “erre zero”) e a imunidade de grupo (ou imunidade de rebanho).

O primeiro indica quantas novas infecções um único indivíduo infeccioso gerará, em média, numa população completamente suscetível. Se este for menor do que 1, a doença será controlada espontaneamente; se for maior do que 1, teremos uma epidemia.

O segundo indica qual a percentagem da população que deve ser vacinada para que a doença fique sob controle. Estes valores variam muito, como pode ser visto nesta tabela abaixo:

Número de Suscetíveis, Infecciosos e número de novas infecções no modelo compartimental mais simples. À direita temos os diversos números reprodutivos básicos: quanto mais alto, maior será o pico de novas infeções mas mais cedo terminará o surto.

Os três gráficos mostram que a imunidade de grupo é atingida quando faltam pessoas Suscetíveis (S) para propagar a doença. Isto ocorre:

1) Porque a doença infectou muita gente e estas têm imunidade, seja temporária (gripe ou Covid, por exemplo) ou permanente (sarampo, catapora, e possivelmente zika).

2) Porque muitos foram vacinados.

Falemos do segundo caso. Não é difícil alterar os modelos originais para incluir vacinação. No caso da vacinação de adultos, tiramos uma parte da população na classe de Suscetíveis (S) e colocamos na classe de Removidos (R). No caso da vacinação de crianças, parte da população nasce S (os não vacinados) e parte nasce R (os que são vacinados ao nascer, ou pouco tempo depois).

Só que este tipo de análise não leva em conta que estamos vacinando seres humanos, que têm vontades próprias e idiossincrasias. Como então modelar o efeito humano na dinâmica de uma doença?

Desde a Revolta da Vacina não se usa mais a vacinação forçada. Aliás, uma curiosidade: a charge abaixo mostra o sanitarista Oswaldo Cruz - hoje um herói da Saúde Pública brasileira - como o líder de um exército tirânico, constituído por enfermeiros, a atacar a população:

Charge publicada no jornal carioca A Gazeta de Notícias, em 1904, critica o caráter de cruzada do esforço do sanitarista Oswaldo Cruz pela erradicação da varíola através de uma campanha de vacinação obrigatória. A polêmica foi grande, mas a vacinação venceu, e a varíola foi extinta.

Do campo da Economia, pego emprestado a hipótese do “ser racional”: segundo ela, cada um age para maximizar a relevância do seu próprio interesse.

Claro que a palavra racionalidade é, neste contexto, um termo técnico, que traz pouca semelhança com seu uso corrente. Afinal, uma pessoa age em cima de fatos e também de percepções, ainda que estas percepções possam ser completamente equivocadas (ou deliberadamente falsas). Portanto, a teoria matemática que permite modelar o comportamento humano é a Teoria dos Jogos: o estudo matemático do pensamento estratégico.

À luz desse pensamento estratégico, uma interessante conclusão para se refletir a respeito é que, quando uma doença está prestes a ser erradicada, os seres racionais, ao estimarem estrategicamente – correta ou equivocadamente – o risco da vacina como sendo maior do que da doença, simplesmente começam a parar de se vacinar.

Consequentemente, a doença volta.

Somente com algum tipo de estímulo concreto e valioso à vacinação - ou com a limitação de direito dos não vacinados, como aconteceu recentemente com a COVID - que um conjunto de seres racionais erradicará uma doença a partir da vacinação voluntária.

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