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A doença de Chagas e as leishmanioses afetam milhões de pessoas ao redor do mundo. Tratamentos são limitados e dolorosos. Poucos estudos sobre novos medicamentos chegam aos estudos clínicos. julia koblitz RlOAwXt fEA unsplash

Inovação nas universidades: a saída contra doenças negligenciadas

Algumas enfermidades tropicais, como a doença de Chagas e as leishmanioses, afetam milhões de pessoas ao redor do mundo. Os tratamentos disponíveis são muito limitados, dolorosos e não produzem o efeito esperado.

Assim, é crucial a busca por novos medicamentos que sejam mais eficazes, seguros e acessíveis aos pacientes. Porém, essas doenças não são economicamente atrativas para indústrias farmacêuticas trabalhando dentro do seu modelo tradicional de inovação, pois são doenças endêmicas em populações de baixa renda e que não preveem grandes retornos lucrativos.

Este ciclo de desigualdade é o que faz a Organização Mundial da Saúde (OMS) tipificá-las como doenças negligenciadas. Diante deste problema, algumas iniciativas como o consórcio LOLA (sigla em inglês para Otimização de Compostos Líderes na América Latina), acreditam que apoiar uma atuação mais ativa das universidades públicas em países endêmicos e sua inserção em redes internacionais de pesquisa e desenvolvimento (P&D), é fundamental para conquistar o objetivo de desenvolver novos tratamentos para doenças desatendidas que sejam pensados desde a sua concepção, para atender as necessidades dos pacientes.

Não se trata de uma tarefa fácil. O consórcio LOLA foi criado há 10 anos com o objetivo de montar uma estrutura acadêmica, primordialmente latino-americana, para conduzir as etapas iniciais da descoberta de novos medicamentos. O consórcio tem como parceiros principais a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade de São Paulo (USP) e é coordenado pela iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), que por sua vez foi criada em 2003 pela união de esforços das organizações Médicos Sem Fronteiras (MSF), Fiocruz, OMS e mais cinco instituições de pesquisa internacionais, usando parte do valor do Prêmio Nobel da Paz, concedido ao MSF em 1999.

Obstáculos na descoberta de novos remédios

Após dez anos liderando o LOLA, pudemos observar alguns obstáculos importantes para atingir esse objetivo. O principal é que na América Latina há uma grande lacuna de coordenação e de capacidades técnicas necessárias para condução de pesquisas translacionais, ou seja, que conectam a pesquisa básica à aplicada, aquelas que possam de fato traduzir o conhecimento gerado nas universidades em produtos de saúde.

Afinal, o processo de desenvolvimento de um novo medicamento (ou novo fármaco) é complexo, reúne expertises muito diversas, não é realizado por apenas uma instituição isolada e especialmente difícil no caso de doenças infecciosas onde o parasita se aloja dentro das células humanas, o que torna difícil atacar apenas o intruso (parasita), sem atingir o hospedeiro (ser humano).

Um exemplo de grande limitação prática está na falta de integração de pesquisas na área da farmacocinética, aquelas que avaliam como novas substâncias são absorvidas pelo corpo, distribuídas e metabolizadas, com a pesquisa de eficácia.

Quando o LOLA começou em 2013, praticamente, não havia laboratórios no Brasil capazes de fazer esses testes em escala laboratorial e na rotina para atender as necessidades de um projeto de descoberta de medicamentos. Após promover treinamentos para um time de cientistas e dar suporte para a estruturação de uma plataforma de pesquisa dentro de um laboratório acadêmico, hoje o LOLA conta com um pequeno e robusto time de colaboradores especialistas na área.

No fluxo de trabalho que desenvolvemos, vários compostos ativos contra os parasitas Trypanosoma cruzi e Leishmania spp., chamados de “hits”, são testados para avaliar além da sua eficácia, também suas propriedades físico-químicas e sua toxicidade. Então, são feitas modificações químicas para aperfeiçoá-los, e as novas entidades químicas são novamente avaliadas numa bateria de testes, num ciclo que pode se repetir várias vezes.

Poucos compostos avançam até chegar aos estudos clínicos

Os poucos compostos que avançam e chegam à categoria de “líderes” passam por mais avaliações e voltam a ser aprimorados até que tenham as características necessárias para seguir aos modelos de doenças mais complexos e às etapas mais avançadas da pesquisa, com o objetivo de chegar aos estudos clínicos. Ou seja, uma equipe de projeto pode ficar anos estudando milhares de novas moléculas, mas nunca gerar um produto efetivamente, pois a diferença entre um composto ativo e um medicamento é bem grande e esse processo é bastante rigoroso.

Apesar do avanço que obtivemos, a região ainda segue com grandes deficiências. Uma pesquisa mostra que, nos últimos 10 anos, mais de 95% das publicações em doença de Chagas lideradas por autores latino-americanos pararam ainda na etapa inicial da busca por novos medicamentos, sem conseguir conduzir os estudos necessários para avançar as etapas pré-clínica e clínica. Então é evidente que algumas coisas estão faltando e podemos ajudar a melhorar isso através de algumas iniciativas.

Projeto alia ciência aberta e capacitação profissional

Portanto, a DNDi está lançando agora em outubro o OpenCHAGAS Project, uma ferramenta de conexão com pesquisadores latino-americanos, que alia ciência aberta e capacitação profissional em descoberta de medicamentos. A demanda surgiu da própria comunidade científica, que frequentemente nos pedia ajuda com relação aos compostos que estavam desenvolvendo no ambiente acadêmico, o que nos levava a fazer muita consultoria informal.

Consequentemente, decidimos criar esse canal oficial e seguro, pelo qual os pesquisadores podem compartilhar seu trabalho ainda em andamento de forma confidencial e a equipe do LOLA/DNDi se compromete a prover uma espécie de direcionamento para todos os interessados, sugerindo pontos de melhoria e possíveis próximos passos na pesquisa.

Além disso, parte dos cientistas cadastrados nesse programa serão selecionados para iniciar uma colaboração com a rede LOLA de seis a 12 meses, com direito a treinamentos específicos, mentoria e realização de experimentos conjuntos. Ao final do período, todos os resultados gerados ficarão com os pesquisadores que deram origem ao projeto, sem custo. E, caso haja interesse mútuo, poderão estabelecer uma parceria formal para continuar o desenvolvimento desses candidatos como possíveis novos tratamentos para a doença de Chagas.

Este projeto visa apoiar a geração de conhecimento nas universidades, com maior chance de se transformar em inovação no futuro, mas outros esforços também continuam necessários. Para fortalecer mais essa cadeia de desenvolvimento de novos medicamentos, é essencial melhorar os investimentos em pesquisa, seguir o foco na capacitação dos recursos humanos e continuamente melhorar o ecossistema de inovação farmacêutica. O fortalecimento da ciência latino-americana é a aposta mais certeira para a melhorar a vida dos pacientes negligenciados.

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