Em 2023, o Ministério da Saúde registrou 5.310 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em decorrência da Covid-19 em crianças menores de cinco anos no Brasil. Foram 135 mortes. Também em 2023, registrou-se no Brasil 51 casos e uma morte em razão da Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), uma manifestação tardia da Covid-19 (desde o início da pandemia, houve 2.103 casos, com 142 mortes por SIM-P).
Isso não precisa acontecer. Existe vacina, segura e eficaz, capaz de proteger as crianças da doença, e ela foi incorporada ao calendário de vacinação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) neste ano, para crianças de seis meses a menores de cinco anos. Estudos mostram que a vacina tem uma efetividade de cerca de 75% para casos de Covid moderados e graves, e de 84,9% para internações em UTI.
Por isso, causou grande espanto entre especialistas que o Conselho Federal de Medicina (CFM) tenha questionado a vacinação de crianças, ao criar uma pesquisa para avaliar a opinião dos médicos sobre o tema. Não há precedente de uma pesquisa de opinião médica sobre uma questão como essa.
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) foi a primeira instituição a se posicionar contra essa ação do CFM - órgão que representa a classe médica do país - e foi seguida por diversas outras instituições, todas corroborando o mesmo grau de espanto.
Entendemos que uma pesquisa como essa é prejudicial para a confiança da população e acaba por afastar as pessoas das salas de vacinação. E ver a vacina sendo questionada pelo órgão máximo da categoria dos médicos incita a insegurança até entre os próprios profissionais de saúde que não são especialistas em imunização.
Não há controvérsia científica
Durante toda a pandemia, o Conselho Nacional de Medicina adotou posições contrárias à ciência: defendeu o uso da cloroquina e da ivermectina, mesmo quando as evidências científicas já mostravam que esses medicamentos não são eficazes na prevenção ou tratamento da Covid-19. Essa pesquisa sobre a vacinação em crianças segue na mesma linha, e pode dar a entender que existe uma controvérsia científica sobre o tema. Não há.
A vacinação de crianças abaixo de 5 anos é recomendada e necessária. Sua inclusão no Calendário Nacional de Vacinação a partir de 2024 foi baseada em fundamentos sólidos de evidências científicas. A recomendação da autoridade sanitária - que nesse caso é o PNI - para a introdução de uma vacina no programa de imunizações não é leviana: ela passa por uma série de reuniões, discussões, apresentação de dados, opinião de especialistas, avaliação de dados internacionais e análise de experiências de outros países.
Como presidente da SBIm, participei, ao lado da minha suplente, Dra. Isabella Ballalai, das reuniões da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 do Ministério da Saúde, das quais participam também, além da equipe do próprio PNI, o coordenador do Programa de Imunizações e representantes da Secretaria de Vigilância em Saúde, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e de várias outras sociedades médicas e instituições ligadas à área da saúde.
Ao final das discussões, a decisão foi unânime: ninguém foi contra ou questionou a introdução dessa vacina no PNI como uma vacina rotineira e, portanto, obrigatória, nos mesmos moldes de vacinas como a de polio, sarampo e tantas outras que fazem parte do calendário nacional de vacinação infantil.
Movimento antivax
O Brasil tinha um programa de vacinação muito bem estruturado, que serviu de exemplo para o mundo, com uma adesão muito grande da população, tanto na vacinação rotineira quanto nos chamados de vacinas extras para contenção de surtos de doenças. Grupos contrários às vacinas existiam, mas eram pequenos e não conseguiam atrapalhar o trabalho de imunização da população, que manteve por décadas altas taxas de cobertura vacinal.
Com a pandemia, a cobertura vacinal (de todas as vacinas) sofreu uma queda brutal, em parte por conta do distanciamento social e do receio das pessoas de irem aos postos de saúde, mas também graças ao governo federal que rejeitou a vacina, questionando sua segurança e eficácia, incitando o medo e insegurança na população, permitindo tantas fake News e desinformação que surgiram à época e que acabaram influenciando também a aceitação de outras vacinas, além das vacinas covid-19. Ora, espera-se do chefe máximo da federação servir de exemplo e incentivar a vacinação do seu povo, zelar pela saúde da população, respaldar o que a ciência comprova e o Ministério da Saúde recomenda. Mas, ao contrário, permitiu a melhor organização dos pequenos nichos de antivaxx que já existiam no Brasil, que fizeram e continuam fazendo um grande estrago.
Apesar disso, no início da pandemia, a população aderiu à vacina. A cobertura vacinal para Covid-19 nos idosos, profissionais da saúde e pessoas com comorbidades (que foram os grupos prioritários) foi excelente. Quando se chegou à faixa etária infantil, no entanto, esses grupos contrários à vacinação se organizaram e o governo federal acabou se posicionando contra a imunização das crianças.
Agora a vacinação contra a Covid para crianças já está no Programa Nacional de Imunização, mas as consequências do descaso com o PNI nos últimos anos se reflete nas baixas taxas de cobertura vacinal: mesmo depois do fim da pandemia, os índices de vacinação não voltaram aos patamares anteriores a ela. A desconfiança contra a vacina de Covid acabou respingando nos demais imunizantes. O trabalho de recuperação das coberturas vacinais e da confiança nas vacinas pela população está sendo árduo, mas já se conseguiu reverter a curva de queda e os índices de cobertura vacinal estão aumentando.
Uma desconfiança que não se justifica. O Brasil tem uma farmacovigilância que monitora as vacinas pós-licenciamento e que está muito atenta aos registros de eventos adversos, avaliando sua duração e grau (se leve, moderado ou grave). Os dados desse monitoramento entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022 apontam que mais de 47 milhões de doses foram aplicadas em pessoas menores de 18 anos. Os Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação e à Imunização (Esavi) nesses jovens foram, em sua grande maioria, leves ou moderados - como dores de cabeça, mal-estar, febre, dor e/ou inchaço no local de aplicação reações essas esperadas e passageiras.
No caso das crianças a partir dos seis meses até menos de cinco anos, esses eventos adversos são ainda menores, em razão da dosagem que é usada nas três doses de Pfizer-Baby (por enquanto, a única vacina autorizada para essa faixa etária no Brasil). Quando ocorrem, os eventos adversos são mais raros.
Não houve nenhum óbito relacionado à vacina em menores de 18 anos, mas houve óbitos devido à Síndrome Inflamatória Multissistêmica e muitas crianças pequenas internadas necessitando oxigênio devido à Síndrome Respiratória Aguda Grave, causados pela Covid-19. O impacto da doença no Brasil, nessa faixa etária, é grande. O número de casos aumentou entre 2022 e 2023, e a tendência é seguir aumentando. E é isso que justifica a vacinação, que é obrigatória como todas as demais do calendário de vacinação nacional.
A Constituição brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem às crianças o direito à saúde e à proteção, o que faz com que seja obrigação dos pais e responsáveis e dever do Estado zelarem pela saúde das crianças e adolescentes. Contudo, toda essa discussão em torno da vacinação contra a Covid tem afastado os pais da vacinação.
E o mais grave é que essa contaminação pelas fake news chega até os profissionais de saúde. Recentemente, fui procurada por mãe, que veio aos prantos conversar comigo porque levou o filho de oito meses para receber a primeira dose de vacina Covid. A enfermeira da sala de vacina se recusou a aplicar a dose, alegando que a vacina poderia matar a criança.
Casos como esse seguem acontecendo pelo Brasil afora. Por isso é tão importante desmistificar a vacina e mostrar para a população a sua importância. Não há motivos para questionamento. Os questionamentos foram feitos na análise de incorporação da vacina no PNI, e foram de caráter puramente científico, debatidos pelos maiores especialistas do país. Não cabe ao CFM, ou qualquer outro órgão isoladamente, incitar a desconfiança sobre uma vacina que é fundamental para a saúde da população e cuja aceitação já está comprometida desde o início da pandemia.