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Ativistas do direito ao aborto marcharam na Avenida Paulista, em São Paulo, contra o projeto de lei anti-aborto no Congresso. Ettore Chiereguini/AP

“PL do estupro” desconsidera a justiça reprodutiva

Na manhã do último 12 de junho, dia dos namorados, nós mulheres brasileiras acordamos com a possibilidade iminente de um controle absurdo sobre nós. É assustadora e perturbadora a proposta que quer penalizar a mulher por ela exercer o direito ao próprio corpo, à própria vida. Esse mundo distópico pode começar a se tornar real, se for aprovado o projeto de lei 1904/2024, que altera o Código penal, equiparando a punição de abortos legais realizados após as 22 semanas de gestação à pena por homicídio.

Em vez de estarmos discutindo o “PL do Estupro”, o Congresso Nacional deveria propor projetos de lei que garantissem a justiça reprodutiva às mulheres. Se o princípio dos legisladores que propuseram o PL 1904/2024 fosse de fato a defesa da vida, como pretendem dar um caráter defensável a essa proposta absurda, a discussão passaria necessariamente pela elaboração de políticas que garantam os direitos reprodutivos, que determinam a proteção legal e a criação de uma rede adequada para que mulher tenha acesso à saúde reprodutiva, com foco em aumentar o acesso à contracepção e garantir o aborto legal.

Justiça reprodutiva

O termo “justiça reprodutiva” foi criado por mulheres negras em Chicago, nos Estados Unidos em 1994 para definir o direito à autonomia do próprio corpo na decisão de ter ou não filhos.

No Brasil, é uma luta dos movimentos feministas, e tem sido amplamente trabalhado pelo Geledés - Instituto da Mulher Negra e pela organização da sociedade civil Criola. Foram as mulheres que primeiro denunciaram a aberração da proposta, com ressonância em toda a sociedade civil; artistas, formadores de opinião, especialistas e ativistas que se mobilizaram contra o PL 1904/2024.

Diante da pressão de parcela significativa da população brasileira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que a discussão do “PL do Estupro” foi adiada para o segundo semestre.

O recuo é motivo para comemorar, mas os riscos do PL ser aprovado no futuro próximo é um ataque frontal à saúde das mulheres e seus direitos reprodutivos. É preciso estarmos atentas e fortes!

A importância da representatividade da mulher na política se mostra quando miramos a autoria desse projeto de lei, assinado pelo deputado Sóstenes Cavalcante e outros 56 deputados federais, sendo apenas uma mulher, a deputada Silvia Waiãpi (PL-AP). Em outras palavras, esse projeto é mais uma demonstração de homens legislando e decidindo sobre o corpo das mulheres.

Pasmem, a proposta quer alterar a legislação sobre o aborto legal, que é garantido às mulheres em situações adversas, como o estupro, o risco de vida e a anencefalia fetal, quando não há formação do cérebro no feto.

O Projeto de Lei 1904/24 equipara o aborto acima de 22 semanas de gestação ao homicídio e prevê pena máxima de 20 anos para quem fizer o procedimento. Ou seja, o projeto retira um direito das mulheres e impõe uma pena maior a ela do que a pena para o abusador.

O projeto também estabelece o tempo máximo de gestação para realizar o aborto, o que não consta no Código Penal. Em síntese, esse projeto penaliza a mulher no momento em que ela está vulnerável, também contribui para desarticulação de uma rede de atendimento a essas mulheres já fragilizada e abre espaço para mais desinformação e tabu sobre a prática.

Ser mulher é conviver com o medo permanente de ser alvo de um estupro. Os números são alarmantes. Em 2023, o Brasil registrou 74.930 estupros, sendo 56.820 estupros contra vulneráveis. De acordo com dados do Ministério da Saúde, neste mesmo ano, foram 2.687 casos de aborto legal. E saber que se formos vítimas de um abusador e engravidarmos, teremos que escolher em manter a gravidezes de um estupro ou sermos presas por interrompê-la. E imaginar essa escolha para uma menina com menos de 14 anos?

Atlas da violência

Uma reportagem da Folha de S. Paulo apontou que meninas de até 14 anos sofrem proporcionalmente mais violência sexual do que mulheres adultas. A reportagem se baseia no Atlas da Violência 2024, divulgado no dia 18 de junho, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em 2022, 30,4% da violência sofrida por crianças do sexo feminino na faixa de 0 a 9 anos teve caráter sexual. Na faixa etária de 10 a 14 anos, 49,6%. Entre 15 e 19 anos, 21,7%.

Mesmo com a previsão do aborto legal em lei, ainda é bastante difícil a mulher ter acesso à uma prática segura.

No Brasil, há 62 hospitais credenciados, mas apenas 40 serviços de aborto legal em hospitais públicos prestam atendimento a mulheres grávidas vítimas de estupro ou com risco de vida.

Desconhecimento legal

Há um desconhecimento do serviço por 48% da população. Para realizar o aborto legal, com frequência, a mulher passa por uma via crucis, tendo que, às vezes, até viajar para outros estados para realizar o procedimento.

Cinco estados (Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí e Mato Grosso do Sul) não contam sequer com um único hospital que confirme realizar o procedimento. Soma-se a isso o julgamento moral que recai sobre a mulher que necessita do procedimento.

Uma reportagem da revista Gênero e Número apontou que, em 2022, foram realizadas 180,5 mil internações por aborto em hospitais da rede pública e privada. Nove de cada 10 casos de hospitalização para interrupção da gravidez ou por perda gestacional foram realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que significa que a rede pública de saúde atendeu 97% dos procedimentos classificados como legais.

O julgamento moral em torno do aborto faz com que mulheres se submetam ao procedimento às escondidas, sem os devidos cuidados, correndo risco de vida. Para piorar, conservadores criam narrativas morais culpando a mulher, como a encenação dantesca apresentada no Senado na quinta-feira (17) em Brasília.

Esse argumento conservador impacta na vida das mulheres, colocando-as em risco. E isso é feito de tal forma que interdita o debate na esfera pública.

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