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Na estiagem, o afloramento do Pedral do Lourenço prejudica a conexão fluvial do Norte com o resto do país. A derrocagem do Pedral reduzirá custos logísticos, mas poderá prejudicar a sobrevivência de milhares de ribeirinhos. Mesmo com as obras previstas para iniciar no começo de 2024, a polêmica continua, a resistência de cientistas e ambientalistas é grande e o Ministério Público Federal segue avaliando o caso. Foto: CNT - Divulgação

Projeto histórico de ampliação da hidrovia Araguaia-Tocantins segue desconsiderando impacto para 22 comunidades ribeirinhas

À medida em que os desafios socio-ambientais na Amazônia tornam-se cada vez mais sensíveis para a já crítica situação climática planetária, as históricas contradições da política de desenvolvimento econômico no Norte do Brasil causam mais preocupação. O caso do derrocamento do Pedral do Lourenço, na hidrovia que liga os rios Araguaia e Tocantins, no Pará, é um exemplo emblemático. Estudos mostram que os direitos das comunidades locais e a preservação dos recursos naturais estão sendo colocados em segundo plano face aos benefícios que o projeto trará para o desenvolvimento econômico da região.

Prestes a sair do papel após décadas de adiamentos e polêmicas, a intervenção está marcada para ser iniciada em março de 2024. Ela visa a ampliação da navegabilidade nos rios Araguaia e Tocantins. Para isso, o projeto envolve a fragmentação e remoção de rochas ao longo de mais de 30 km desses rios, impactando diretamente cerca de 22 comunidades cuja subsistência está fortemente ligada à pesca.

A derrocada tem como objetivo viabilizar o transporte de produtos das indústrias do agronegócio, mineração, alumínio e carvão por comboios de barcaças com extensão superior a 170 metros. No porto de Barcarena, localizado no extremo norte da hidrovia, as mercadorias seriam transferidas para navios, agilizando o alcance de destinos como a China e outros mercados de exportação.

Este projeto integra uma estratégia mais ampla do governo e da indústria, inserida no chamado Arco Norte do Brasil, que visa desenvolver uma nova infraestrutura de transporte no norte do país para otimizar a eficiência no envio de commodities para o exterior. Grandes corporações do setor de mineração e do agronegócio, notadamente produtores de soja associados à Aprosoja, entidade que respalda a iniciativa, serão diretamente beneficiadas por esse plano.

Projeto sempre provocou conflitos

Em torno desta obra, emerge um cenário de conflitos, com divergências entre moradores locais, ambientalistas e os órgãos do poder público brasileiro. As posições divergentes revelam interesses contrastantes, especialmente no que diz respeito ao impulso econômico da região.

O processo de licenciamento atual é alvo de questionamentos, e os resultados das audiências públicas indicam a necessidade de uma escuta mais aprofundada e de estudos mais detalhados para identificar com precisão os impactos socioambientais.

No âmbito local, as preocupações concentram-se na capacidade de manutenção das práticas de pesca tradicional, que sustentam as economias das populações ao longo dos 30 km de rios afetados pelo Pedral.

Mapa mostrando o traçado de um rio, com vários pontos que representam comunidades ribeirinhas
Hidrovia Araguaia-Tocantins: o mapa mostra a localização dos vários quilombos existentes ao longo do rio Tocantins, assim como a de outras comunidades tradicionais. Mapa produzido por João Silva Barbosa Jr. e organizado por Edir Augusto Dias Pereira e Manuel Maria Pinto da Rocha Ramos

Em uma perspectiva regional, os estudos até agora realizados indicam que a execução da obra não apenas impactará profundamente a vida dessas comunidades, mas também intensificará os processos de degradação socioambiental, contribuindo para o aumento dos índices de desmatamento na região.

No evento técnico-científico mais recente sobre o tema, promovido pelo Ministério Público Federal em 9 de novembro de 2023, em Belém, foram apresentados resultados de pesquisas sobre os impactos da criação da hidrovia na pesca e nos direitos territoriais das comunidades tradicionais da região. Durante o evento, ficou evidente a fragilidade do processo de licenciamento, especialmente na elaboração do Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da obra.

O EIA/RIMA é o estudo encomendado pelo DNIT à DTA Engenharia, empresa vencedora da licitação para construção da hidrovia, contratada em 2016. Segundo o Grupo de Trabalho Pedral do Lourenço, uma iniciativa do Centro de Apoio Operacional Ambiental (CAO Ambiental) do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), o EIA/ RIMA analisa de forma superficial os impactos decorrentes dessa atividade em um dos rios mais caudalosos do planeta, que percorre diversos estados brasileiros e municípios no Estado do Pará.

O jurista Felício Pontes, do Ministério Público Federal, destacou a recorrente sub-notificação dos impactos socioambientais nos processos de licenciamento de grandes empreendimentos amazônicos.

O Prof. Dr. Alberto Akama, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), abordou o impacto sobre mais de 25 espécies de peixes ameaçados devido à influência da hidrovia. Ele ressaltou que o processo de elaboração do EIA-RIMA ignorou o Plano Nacional de Conservação da Biodiversidade em suas análises, negligenciando medidas mitigadoras, como nas regiões do Baixo Tocantins, Marabá e Itupiranga, onde a pesca pode ser afetada.

Entardecer no Rio Tocantins: projeto não prevê consequências sobre a fauna e a cultura de subsistência da região. Agência Pública, CC BY

A professora Cristiane Oliveira da Cunha, do Núcleo de Educação Ambiental da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará), ressaltou que a hidrovia não é um projeto isolado, devendo-se observar os impactos em sua magnitude, especialmente em conjunto com outros grandes empreendimentos de infraestrutura, como a conclusão das eclusas de Tucuruí, a hidrelétrica de Marabá e a hidrelétrica de Santa Isabel no rio Araguaia. Em suas palavras:

Precisamos ter em mente a compreensão do impacto que é a viabilização desse trecho que possui o maior sítio arqueológico a céu aberto da América Latina a ser alagado em caso da viabilização da hidrelétrica de Santa Isabel (…) Os impactos diretos serão de Marabá a Barcarena, não sendo apenas de 40 km, mas de 500 km, e os estudos foram feitos de Marabá a Baião num trecho de apenas 40 km. (Cunha, 2023).

Segundo Cristiane Cunha, o projeto negligencia os impactos que ocorrerão em todos os municípios a jusante (na direção da foz) e a montante (em direção à nascente, ou seja, na contracorrente) da hidrelétrica de Tucuruí, pois não foram conduzidos estudos a partir do município de Baião. Pelos estudos, é como se em Baião a Barcarena não haverá impacto algum. Além disso, é crucial compreender que o número de comunidades ribeirinhas é maior do que o indicado pelos estudos do EIA RIMA.

Previsão de impactos na fauna

Cunha destaca ainda que a obra afetará a vida e a fauna no rio Tocantins, conforme apontam os resultados da pesquisa e do monitoramento participativo da pesca. Esses dados indicam que a hidrovia se sobrepõe às áreas de reprodução, por exemplo, das tartarugas e outros quelônios na região.

A pesquisa sobre a pesca envolveu 107 pescadores e 61 unidades produtivas, revelando que, ao longo de um ano, essas unidades capturaram 41 toneladas de pescado, totalizando 670 mil reais em receitas. Como destaca a professora, a pesca não apenas gera renda para a comunidade, mas também movimenta a economia local. E ressalta que a derrocada compromete não apenas a disponibilidade de peixe, mas também a alimentação das famílias, a renda da comunidade e a do município.

Diante das análises apresentadas em relação a obra do Pedral do Lourenço, percebe-se que a abordagem dos problemas socioambientais amazônicos precisa ser ampliada para incorporar preocupações relacionadas à potencialização dos sujeitos locais nas políticas públicas do Estado brasileiro.

Essa atenção ainda é precária, devido ao alto grau de burocratização nos órgãos do poder público em âmbito federal, estadual e municipal. Há uma visível adoção da visão de desenvolvimento econômico a qualquer custo, em consonância com o cenário dos anos 70.

Esse processo de implementação das políticas de desenvolvimento regional reflete a tônica que norteia a racionalidade política predominante no Brasil desde sua independência. O estado brasileiro opera com base em premissas de governabilidade voltadas para fora, ancoradas na lógica do desenvolvimento para fora. Isso implica que a política interna é moldada pela adesão ao ideário externo hegemônico, independentemente dos interesses e necessidades das populações locais.

Os benefícios sociais para as comunidades locais envolvidas nos grandes projetos de desenvolvimento econômico são limitados a melhorias pontuais e localizadas. São mais focadas nos aspectos econômicos do que na integração efetiva entre esses aspectos e uma coordenação política para a gestão sustentável dos recursos naturais da floresta.

Podemos concluir que esses ganhos não conseguem efetivamente conduzir a soluções que poderiam ser vistas como saídas para o desenvolvimento amazônico. Soluções que abrangem três grandes áreas: econômico-ecológicas, humanas e jurídico-políticas.

A primeira está relacionada ao tratamento sustentável dos recursos naturais como catalisadores de um novo desenvolvimento.

A segunda destaca a valorização dos habitantes locais, capacitando a gestão democrática dos recursos regionais e reconhecendo o conhecimento das populações locais em suas interações com a natureza.

A terceira aponta para a necessidade de uma nova abordagem de desenvolvimento regional, superando mitos que ainda prejudicam a região.

A conscientização pública sobre os problemas socioambientais, exemplificada pelas consequências da derrocada do Pedral do Lourenço no Pará, implica a Educação Ambiental como uma estratégia crucial para ampliar as capacidades adaptativas da sociedade amazônica e global diante dos desafios ambientais evidenciados pelas crises e emergências climáticas.

Nesse contexto, a Educação na Amazônia deve ser uma prioridade séria, contribuindo para estabelecer novas relações entre sociedade e natureza, tanto na região amazônica quanto globalmente, construindo valores baseados na compreensão da natureza e de nossa humanidade, ambas afetadas pela degradação ambiental provocada pela sociedade humana.

A necessidade contínua de ampliar as escutas às comunidades locais é evidente, requerendo um comprometimento coletivo da sociedade e do poder público. Isso implica, primeiramente, reconhecer que, mesmo na Amazônia, é fundamental aprimorar nossa compreensão da natureza e identidade amazônicas em direção a esforços que transcendam os obstáculos burocráticos que ainda influenciam a implementação de grandes empreendimentos econômicos regionais. É possível e é, sobretudo, necessário fazer diferente!

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