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Mulheres da nação Paresi usando seus celulares durante um evento em Palmas, no Tocantins: Instagram e YouTube registram número cada vez maior de contas de indígenas mobilizadas em denunciar crimes ambientais, preservar suas culturas e defender direitos civis. AP Photos/Eraldo Peres

Redes sociais e tecnologia digital impulsionam ativismo de mulheres indígenas na defesa dos povos originários

No imaginário coletivo das populações urbanas, indígenas são avessos à tecnologia. No Brasil, as mulheres indígenas vêm demonstrando que essa percepção colonial já não condiz mais com a realidade atual dos nossos povos originários. Cada vez mais, elas vêm incorporando as tecnologias digitais às suas relações sociais, e apropriando-se delas para o fortalecimento de suas lutas coletivas.

Um caso emblemático é o do Acampamento Terra Livre (ATL), considerado o maior encontro de indígenas do Brasil, que ocorre desde 2005 e é a instância maior de deliberação, decisão e visibilidade do movimento, que todo ano se reúne em marcha rumo a Brasília.

Em 2020, por causa da pandemia, a edição do ATL foi realizada, pela primeira vez, inteiramente em ambiente digital. Na ocasião, a atual ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, enfatizou que a comunicação digital havia se tornado uma nova estratégia de luta:

“Nós vamos continuar lutando para demarcar nossas terras, mas nós vamos também demarcar as telas, as redes sociais, o Instagram, o Facebook, o site, o Twitter, o YouTube, nosso povo vai estar presente em todas as redes”, ressaltou.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, durante discurso em Belém, em 2023: demarcação também nas telas das redes sociais. AP Photo/Eraldo Peres

A necessidade de fortalecer a comunicação, especialmente durante o período de crise sanitária, fez com que as comunidades indígenas passassem a aderir mais fortemente à utilização da internet.

Para a ativista indígena Nyg Kaingang, essa foi a forma de encurtar as distâncias e resolver a impossibilidade do encontro presencial:

“Como não podemos estar juntos fisicamente, estamos conectados pelas redes, ocupando as redes, demarcando as redes enquanto mulheres, enquanto povos, enquanto juventude indígena”, afirmou, durante o ATL 2020.

Luta contra estereótipos

Atualmente, podemos observar empiricamente a ampla utilização de perfis de mulheres nas redes sociais digitais, reconhecendo-se como indígenas e atuando individualmente em defesa das lutas do Movimento Indígena, alcançando grandes audiências, denunciando violações de direitos e estabelecendo diálogos com a sociedade, em uma estratégia individual que impacta o coletivo.

Muitas dessas mulheres são personalidades com reconhecimento social na esfera digital, que amplificam as vozes femininas em uma postura descolonizadora. Ao se apropriarem dessas plataformas, elas enfrentam o imaginário coletivo, ao se situar no fluxo entre diversos territórios, exercendo diferentes papéis sociais, ressignificando o ser mulher indígena.

Elas apresentam outras nuances sobre as identidades indígenas não conhecidas pela ampla maioria da população não indígena, como mulheres indígenas exercendo papéis de escritoras, professoras, artistas, empreendedoras, políticas, militantes, que subvertem a lógica colonial que as condiciona ao lugar da irracional, primitiva, atrasada.

Prints de perfis públicos de mulheres indígenas do Instagram: Eliara Potiguara, Shirley Krenak, Sonia Guajajara e Marcia Kambeba
Demarcando telas: mulheres indígenas têm conseguido produzir, nas plataformas digitais, outros sentidos sobre o ser mulher indígena, descolonizando e ressignificando seus papéis sociais. Prints do Instagram

Na tentativa de “burlar” as marcas de opressão e os estereótipos, presentes nas instituições sociais e na sociedade em geral, as mulheres indígenas têm conseguido produzir, nas plataformas digitais, outros sentidos sobre o ser mulher indígena. Normalmente, quando postam na internet, as mulheres indígenas estão inscritas em outros acontecimentos, sem reforçar a nudez ou a concepção colonial de selvagem.

Essa nova forma de circulação atualiza os discursos sobre a identidade indígena”. As pinturas corporais marcam a representação do corpo indígena na internet (jenipapo e urucum) como marca da identidade cultural, desafiando estereótipos cristalizados no imaginário coletivo.

Apropriação tecnológica: um processo em curso

Desde o final do século XX e mais fortemente a partir do século XXI, com a popularização das tecnologias digitais de comunicação e a disseminação da internet, os povos indígenas vêm se apropriando de diversas plataformas e linguagens comunicativas digitais, produzindo uma ampla gama de produtos midiáticos e versando sobre uma pluralidade de temáticas, com estratégias distintas.

Mobilizar, estudar, buscar notícias, postar informações relativas aos jogos indígenas, vender produtos online, denunciar crimes ambientais, preservar e divulgar a cultura, defender direitos, mostrar condições de vida. Essas são algumas das possibilidades de utilização da internet por povos indígenas na atualidade.

Encontramos em redes sociais digitais, como o Instagram, e em plataformas de compartilhamento audiovisual, como YouTube, centenas de milhares de perfis e canais de coletivos, instituições, grupos de comunicação e contas pessoais indígenas que compõem esferas de visibilidade, com ampla atuação e produção multimidiática.

O ambiente digital tornou-se um grande acervo de memória, resistências e produção cultural indígena, possibilitado por meio da convergência digital que contribuiu para produção de múltiplas linguagens: texto, áudio, vídeo, fotografia, e outras, nativas das plataformas, como stories e aovivo (Instagram) ou lives e vídeos gravados (YouTube), além das possibilidades de captura, edição e distribuição de conteúdos midiáticos por aplicativos específicos. Tudo na palma da mão, via smartphones e acesso à internet banda larga.

Apesar dessa realidade, a apropriação tecnológica por povos indígenas é um processo em curso e não é unânime, pois as tecnologias de transformação não estão presentes em todos os territórios indígenas brasileiros. Pelo contrário, dados divulgados pela Pesquisa TIC Domicílios, divulgados pela Agência de Jornalismo Alma Preta em 2021, revelam que metade dos indígenas nunca utilizou o computador.

Segundo a pesquisa, o dado não está relacionado diretamente ao acesso à internet: parece estar mais ligado ao fato de que o uso do celular segue a tendência mundial também pelos povos indígenas. O aparelho é o principal dispositivo de uso diário, com adesão de 97% dos indígenas interrogados. De acordo com os dados, o principal motivo para a não utilização do computador é a falta de habilidade (36%), seguido pela falta de interesse (30%), alto valor dos dispositivos (8%), a falta de necessidade (8%) e o fato de não ter onde usar (3%).

Protagonismo de mulheres indígenas no ambiente digital

Nesse processo de apropriação tecnológica, as mulheres indígenas vêm cada vez mais ocupando espaços e conquistando protagonismo no ativismo digital do Movimento Indígena Brasileiro contemporâneo. Com a contribuição potencial das plataformas, elas promovem fissuras no silêncio imposto, desafiam a lógica do pensamento moderno e produzem novos sentidos, memórias e identidades, em diálogo entre si e com a sociedade.

Esse protagonismo é possibilitado por meio de um longo processo de apropriação das tecnologias de comunicação e informação, acesso à internet, inclusão digital, uso das redes sociais e é construído a partir da necessidade de “articular novas posturas de resistência”.

Mesmo mantendo formas tradicionais de resistência, como a ocupação das ruas com cartazes, as marchas presenciais, o enfrentamento físico frente aos garimpeiros e as denúncias protocoladas contra as diversas violações de direitos, o ambiente digital é, na contemporaneidade, uma das principais formas de mobilização, articulação e visibilidade, num fluxo entre ocupar ruas e redes. As mulheres indígenas sabem da importância da comunicação mediada tecnologicamente como dimensão de suas resistências.

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