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Vista de uma favela, com vários barracos de alvenaria, com prédios luxuosos ao fundo
Reforma em tramitação no Congresso procura reduzir a desigualdade, equilibrando dois objetivos não necessariamente conciliáveis: corrigir distorções históricas do sistema tributário e aumentar a arrecadação. Victor R. Caivano/ AP

Reforma tributária de Lula tenta se equilibrar entre correção de distorções e aumento da arrecadação

A agenda do governo Lula para a área tributária tenta equilibrar dois objetivos não necessariamente conciliáveis: corrigir distorções históricas do sistema tributário e aumentar a arrecadação, de modo a perseguir a meta do déficit primário zero.

O fracasso das tentativas anteriores para aprovar reformas abrangentes produziu um consenso entre os especialistas de que as propostas de reforma devem ser parceladas, de modo a não produzir uma grande coalizão de veto composta por todo o conjunto de potenciais perdedores. Assim, o governo decidiu iniciar pela reforma da tributação indireta (imposto sobre bens e serviços), deixando a tributação direta (renda) para uma segunda fase.

A estratégia não foi acidental, porque neste caso a ordem dos fatores alteraria o produto. As chances de aprovação da PEC 45 eram maiores do que a reforma da tributação da renda. Caso o governo tivesse começado por ela e sofresse uma derrota parlamentar, corria o sério risco de não aprovar coisa alguma.

A decisão foi acertada. A PEC que cria o IVA dual está prestes a ser aprovada na Câmara dos Deputados. Entretanto, seu legado tende a piorar o trade-off entre justiça tributária e arrecadação para as próximas etapas da estratégia do governo.

Brasileiros se sentem sobretaxados

Em estudo que realizamos para a Samambaia Filantropia e publicado como Nota Técnica 19 pelo Centro de Estudos da Metrópole (O que pensa o eleitorado brasileiro sobre redistribuição de renda?), demonstramos que os brasileiros se sentem mais sobretaxados do que os eleitores de qualquer outro país da América Latina. Rejeitam fortemente aumentos na carga tributária, especialmente em sua própria carga individual. Não é por acaso que a principal estratégia dos opositores da PEC 45 consiste em associar a reforma ao inevitável aumento da carga, o que forçou o ministro Haddad a comprometer-se com uma reforma neutra do ponto de vista arrecadatório.

Quando os opositores se converteram em lobistas por isenções, estas passaram a ser o preço da aprovação da reforma. Um custo das isenções é uma alíquota do IVA dual mais alta para os não privilegiados. Outro é um sistema mais complexo do que se imaginava, embora muito mais simples do que o atual.

Outro ponto que merece destaque é a clareza inédita que se terá sobre o peso desses tributos sobre o consumidor. Diferentemente do que ocorre hoje, a explicitação da quantidade em tributos efetivamente paga pelo contribuinte pode produzir uma situação paradoxal ao governo. Por um lado, coloca-se como o primeiro governo democrático a reformar o sistema tributário no país, criando importante legado.

Por outro, embora tenha simplificado o sistema, fundido tributos e regras, enquanto implantava uma reforma neutra do ponto de vista das receitas, também pode ser visto, equivocadamente, como o responsável pela elevada cobrança sobre bens e serviços no país. Após as modificações no Senado, estima-se uma alíquota de até 27%. Ou seja, a reforma pode aumentar a visibilidade do imposto, perante uma população fortemente opositora a tais aumentos, apesar dos impactos econômicos positivos de uma reforma há muito tempo desejada e necessária. Não tenha dúvida de que o tema continuará a ser intensamente explorado pela oposição.

Congressistas lobistas brigam por isenções

Entretanto, como dito acima, se o IVA não elevará a arrecadação, grande parte do objetivo de reduzir o deficit fiscal ficará a cargo da tributação sobre a renda.

Já está tramitando no Congresso proposta para taxar fundos exclusivos e off-shore. Ainda não sabemos qual será o preço da aprovação destas medidas no Congresso. Em outro estudo da mesma série (O que o Congresso brasileiro prefere em matéria tributária?), demonstramos que conceder isenções é a preferência revelada dos congressistas: 70% das propostas legislativas submetidas por deputados federais vão nessa direção. Portanto, não há boas razões para esperar simpatia na arena parlamentar pela proposta de aumento da carga sobre a renda.

Por outro lado, oitenta por cento dos eleitores brasileiros aprovam a tributação dos mais ricos, o que é o caso na taxação dos fundos exclusivos e off-shore. Com ela, corrige-se evidente desigualdade da tributação entre os mais ricos. Resta saber se o Congresso ficará entre a preferência dos investidores destes fundos ou as preferências do eleitorado, caso este tema venha a ser debatido pela opinião pública. Não somos otimistas aqui, mas fica o registro.

Tudo leva a crer, portanto, que a reforma da tributação direta será mais difícil do que a indireta. Não custa lembrar que a primeira está na agenda desde 1988. No caso da tributação sobre bens e serviços, setores econômicos distintos tinham interesses divergentes, permitindo a formação de coalizões com similar capacidade de mobilização (em detrimento de grupos menos poderosos).

Em relação à tributação da renda, todos os setores poderosos tendem a se unir para gozar de vantagens tributárias dadas a rendimentos de capital. Sejam profissionais liberais, comerciantes ou industriais, todos se beneficiam de lucros declarados na pessoa física, bem como fazem seus planejamentos tributários, como estratégia de elisão fiscal. Os próprios fundos exclusivos são elucidativos disto.

Se a reforma tributária indireta trazia um ganho regulatório evidente, criando “ganhadores” com o novo desenho do sistema, resta à reforma da tributação sobre a renda seu apelo redistributivo e sua capacidade de retificar privilégios injustificáveis.

Considerando o que se sabe sobre o típico comportamento parlamentar nesta área, o embate entre coalizões pró e antiprogressividade será tenso. Por um lado, existe uma coalizão formada por governo e setores específicos da sociedade civil, que anseiam por maior justiça fiscal com ganhos arrecadatórios, enquanto por outro, há uma coalizão liderada pelo 1% no topo, com forte capacidade de influência política.

Num dos países mais desiguais do mundo, conferir maior progressividade ao sistema tributário é essencial. No mínimo, menos regressividade. Um sucesso ainda que parcial nesta reforma seria um grande serviço no combate à desigualdade.

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