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Imagem do Museu do Amanhã, de noite, iluminado.
Cátedra Unesco de Alfabetização em Futuros, ministrada no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, investiga o potencial do ser humano de se comportar como células-tronco do planeta, regenerando vida, e não como células cancerígenas. Acervo do autor

Regenerar nossas conexões perdidas com a natureza: passo indispensável para começarmos a salvar o amanhã

Criada em janeiro de 2023, a Cátedra Unesco de Alfabetização em Futuros do Museu do Amanhã - primeira do tipo a ser criada no Brasil e primeira do mundo sediada em um Museu - aposta na regeneração das conexões perdidas do ser humano moderno com a natureza, com o próximo e consigo mesmo.

Acreditamos que esse é o caminho para que comportamentos ancestrais - como a intuição, por exemplo - sejam reativados na sociedade contemporânea, de forma a promover ações que complementem o componente racional da antecipação.

Antecipação e regeneração são dois conceitos biológicos:

Antecipação é a propriedade que organismos e sistemas possuem de criar modelos preditivos de si mesmos, muitas vezes baseado em experiências passadas. Tais modelos geram premissas acerca do futuro, que levam à tomada de decisão no presente. Tudo que é vivo antecipa.

regeneração refere-se à capacidade de autorreparo que qualquer organismo ou sistema, em resposta a injúrias, danos ou perdas.

Logo, tanto antecipação como regeneração são faculdades relacionadas ao bem-estar.

Sistemas antecipatórios

No ser humano, sistemas antecipatórios são verificados em três campos: a antecipação consciente, subconsciente e inconsciente.

A “antecipação consciente” opera na esfera racional, lógica. Previsões e projeções (em inglês, forecasting) antecipam futuros a partir de dados do passado e do presente. Já a prospectiva (foresight) imagina cenários futuros e especula acerca de caminhos prováveis e possíveis entre esses futuros e o presente.

O tipo de antecipação que está no limiar entre o consciente e o inconsciente chamo aqui de “subconsciente”. Intuição, instinto, pressentimentos se encaixariam nessa categoria. São ativados por memórias e aprendizados do tempo de vida do sistema vivo e, possivelmente, também de aprendizados herdados de ancestrais. Muitas das premissas que assumimos ao pensar em futuros (próximos ou distantes) são dessa categoria.

Já a “antecipação inconsciente” consiste de processos biológicos próprios de todo ser vivo, mas que escapam de qualquer controle, inclusive racional, no caso humano. O funcionamento de células-tronco é um exemplo de sistema antecipatório inconsciente. As células-tronco são um mecanismo de reparo ativado em resposta a danos, injúrias e ferimentos, que leva à regeneração do tecido ou órgão danificado.

Vejamos um exemplo que a natureza nos traz. Por mais de uma década, estudei com meus colaboradores uma espécie de árvore de restinga que tem seus ancestrais na Mata Atlântica de encosta, a Clusia hilariana. Na Mata Atlântica, ela é uma planta estranguladora: germina sobre outras árvores, cresce suas raízes em direção ao solo de forma que enforca a árvore hospedeira e, finalmente, a mata, tomando seu lugar.

As restingas onde hoje ocorrem são planícies de areia formadas no norte fluminense há cerca de três mil anos, resultado do último movimento de regressão do mar. Por uma série de processos biológicos, a Clusia, que na mata era estranguladora, viria a se estabelecer na restinga como uma árvore que cria ilhas de vegetação sob as quais outras plantas (na maioria também oriundas da Mata Atlântica de encosta) se estabelecem.

Ela funciona como oásis nas restingas e chegamos a encontrar 100 espécies de plantas distintas sob 100 metros quadrados de moita de Clusia. Assim, afirmamos que essa planta é uma “célula-tronco” do planeta, já que regenera vida sobre um novo ambiente que inicialmente era um deserto de areia.

Prevemos, mas não agimos

Curiosamente, enquanto os sistemas antecipatórios inconscientes são por definição regenerativos, os demais tipos (consciente e subconsciente), no caso humano, têm se demonstrado apenas potencialmente regenerativos.

A ciência faz previsões e prospecta cenários futuros de mudanças climáticas, por exemplo, mas ainda assim o ser humano não toma ações preventivas adequadas. O IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas) atua há quase 40 anos, mas, em paralelo, anualmente quebramos recordes de emissão de gases estufa.

Um estudo de 2012, na importante revista científica Lancet, explicava a relação entre degradação ambiental e zoonoses e propunha um mapa global de risco de pandemias. Também não levou a humanidade a se precaver da pandemia da covid-19, que ocorreria pouco menos de uma década mais tarde.

Vacinas e a reconstrução após desastres causados por extremos climáticos são medidas regenerativas, mas que se dão apenas uma vez que perdas e danos já ocorreram. A antecipação racional destes futuros não tem levado o ser humano dito moderno a tomar ações reparadoras a priori. Logo, a razão só não basta para que nos engajemos em ações individuais e coletivas no presente para melhor lidar com o futuro.

Argumento, então, que o sistema antecipatório humano está danificado, já que há um desacoplamento entre a percepção e a ação, o racional e o emocional, o não-afetivo e o afetivo. Há que regenerar os sistemas antecipatórios humanos, em particular dos modernos, hegemônicos, que são os que trouxeram o planeta até o momento que hoje atravessa. Mas como?

Alfabetização em Futuros

Conforme diagnosticado por Hannah Arendt nos anos 1950, o ser humano moderno se alienou do mundo. É justamente a presença no mundo que reconecta a parte (nós) com o todo. E, hoje, com todas as tecnologias de informação e comunicação que nos cercam, presença tem se tornado algo raro.

A Cátedra Unesco de Alfabetização em Futuros se debruça sobre a antecipação inconsciente como metáfora para ações que o ser humano precisa tomar conscientemente. Nas suas ações de ensino, pesquisa e extensão, examina o potencial do ser humano se comportar como células-tronco do planeta ao invés de células cancerígenas. Investiga casos nos quais a nossa espécie estimula a produção e manutenção da vida no mundo através do cuidado, ao invés de usar o planeta de forma predatória para fins pessoais. Explora ainda formas da comunidade planetária se antecipar ao futuro impensado, se “pré-adaptando” ao desconhecido.

Muito da ação da Cátedra é voltada para promover processos de diálogo a partir de exemplos de antecipação regenerativa que se encontram em elementos não-humanos (especialmente as plantas, como no caso acima, da Clusia) e em humanos não-modernos (como em povos originários e em algumas visões e práticas pós-modernas). Diálogos com essas visões não hegemônicas ampliam a imaginação e nutrem a esperança ativa – do verbo esperançar, como dizia Paulo Freire –, que é um passo indispensável para que emerjam futuros melhores.

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