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Vanessa Carter, diretora executiva da força-tarefa de sobreviventes de RAM da OMS, durante sua participação na Assembleia Mundial da Saúde: ela é um símbolo da luta contra esse problema que cresce no mundo inteiro, e que o Brasil ainda enfrenta de forma tímida. Pierre Albouy / OMS

Resistência antimicrobiana: problema foi destaque na 77ª Assembleia Mundial da Saúde e é desafio crescente para o Brasil

Esta é a história de Vanessa Carter, uma sobrevivente da resistência antimicrobiana (RAM) e atualmente Diretora Executiva da Força-Tarefa de Sobreviventes de RAM da Organização Mundial da Saúde.

Em 2004, Vanessa sofreu um grave acidente de carro na África do Sul que resultou em múltiplas cirurgias e um longo período de recuperação. Durante esse tempo, ela contraiu uma infecção por MRSA, staphylococcus aureus resistente à meticilina, uma bactéria que é resistente aos antibióticos mais comuns.

A infecção por MRSA quase lhe custou o rosto, resultando em múltiplas cirurgias reconstrutivas. Apesar do tratamento, a infecção continuou voltando repetidamente por cerca de 11 meses. Vanessa então foi tratada com antibióticos de última linha, que são reservados para casos graves de infecções resistentes. Segundo ela, um dos principais desafios foi navegar pelo sistema de saúde, particularmente a coordenação de cuidados entre diferentes especialistas. A falta de comunicação e de uma abordagem integrada tornou o tratamento ainda mais difícil e demorado.

O caso de Vanessa foi contado na 77ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), na mesa redonda “Traçando um novo caminho para a ação global contra a resistência antimicrobiana (RAM)”. O encontro promoveu o debate sobre como Estados-Membros podem acelerar a resposta global à RAM, considerando que, em 2019, cerca de 4,95 milhões de pessoas morreram com infecções associadas a bactérias multirresistentes, e 1,27 milhão de pessoas morreram com infecções atribuídas a bactérias multirresistentes.

Dentre as prioridades elencadas, os participantes concordaram sobre a necessidade de estabelecer metas claras, mais ambiciosas e de criar de um painel de especialistas independente para monitorar as metas e prover orientação científica em áreas e setores relacionados com a RAM; de garantir o acesso à antibióticos eficazes; e de criar mecanismos de financiamento sustentável da agenda.

Embora a pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos seja relevante, houve um consenso de que ela sozinha é insuficiente sem políticas públicas que garantam o acesso sustentável a esses medicamentos. Para os países de baixa e média renda, a expansão da oferta e a melhoria na qualidade de infraestrutura de acesso à água, saneamento e higiene (WASH, na sigla em inglês), bem como a ampliação da cobertura vacinal e de medidas de prevenção e controle de infecções foram consideradas como ações prioritárias para a redução das mortes por RAM.

Durante a AMS também ocorreu a plenária com os stakeholders (Multi-stakeholder Hearing on Antimicrobial Resistance) para a preparação para a Reunião de Alto Nível da Assembleia Geral da ONU sobre RAM.

Um dos três painéis que compuseram a plenária discutiu os desafios para governança, liderança e coordenação da agenda nos níveis nacional, regional e global. Um dos principais destaques foi a necessidade de construir evidências em nível de país e de comunicar sobre os impactos da RAM.

Participação do Brasil na agenda global da resistência antimicrobiana

Embora o Brasil esteja presente nos eventos e fóruns de discussão internacionais sobre RAM, a atuação brasileira ainda tem sido tímida dado o potencial que o país tem de liderar a proposição de soluções alinhadas aos interesses de países de baixa e média renda do sul global. O Brasil se comprometeu a desenvolver uma agenda nacional para a RAM cujo marco foi a criação do Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos (PAN-BR 2018-2022).

O Ministério da Saúde ficou responsável por coordenar a agenda e trabalhar em parceria com a Anvisa e Ministério da Agricultura, além de outros ministérios e instituições, com o compromisso de alavancar uma agenda de Saúde Única para o enfrentamento da RAM no país. Embora alguns avanços tenham sido observados, sobretudo na área de vigilância laboratorial, a construção da agenda política no âmbito nacional tem enfrentado vários desafios para tornar o tema prioritário, o que tem impedido o país de exercer um papel mais ativo na agenda internacional.

Desde a publicação do plano, em dezembro de 2018, diversos desafios têm sido postos para que o tema ganhe status de prioridade. Por exemplo, o PAN-BR nasceu em um período de transição governamental caracterizado por alterações na orientação política do país que resultaram na extinção e/ou reorganização de secretarias e departamentos nos ministérios e alterações nas equipes responsáveis por implementar as atividades relacionadas a RAM.

Nos anos seguintes, a crise provocada pela pandemia de Covid-19 afetou a continuidade das ações previstas. Em 2023, a transição governamental e os planos de retomada de agendas importantes para a saúde no país e do papel do Brasil na colaboração internacional sinalizaram um contexto mais favorável à retomada da agenda da RAM.

Contudo, outras questões sanitárias prioritárias, como a Dengue, a crise nos hospitais do Rio de Janeiro, e a emergência causada pelas chuvas no Rio Grande do Sul, tem demandado esforços e atenção de várias secretarias da gestão ministerial para resposta a essas emergências sanitárias.

Nesse contexto, o PAN-BR coordenado pelo Ministério da Saúde ainda não evoluiu para um programa, o que garantiria maior robustez e sustentabilidade. Tampouco contou com financiamento específico. Até o momento em que este texto foi redigido, não foi divulgada a avaliação de seus resultados e uma nova edição do plano, conforme previsto e cumprido pela Anvisa e pelo Ministério da Agricultura em seus planos setoriais que foram atualizados para o período 2023-2027 (PAN- Serviços de Saúde e PAN-AGRO).

Além disso, cabe notar que a resistência não é uma doença específica, mas um fenômeno biológico que impacta a saúde na medida em que dificulta ou impede o tratamento de diversos tipos de infecções, resultando em internações prolongadas, em índices mais elevados de morbidade e de mortalidade e em uma carga financeira maior para as pessoas e os serviços de saúde.

Apesar de ser um fenômeno natural, ele é intensificado pelo uso excessivo de antimicrobianos na saúde humana e animal. O desenvolvimento de uma estratégia de enfrentamento envolve ações coordenadas em várias frentes, como por exemplo, políticas de prevenção e controle de infecções, de regulação, gerenciamento e orientação das práticas de prescrição, uso, dispensação e descarte de antimicrobianos, de garantia de acesso a medicamentos, diagnósticos e vacinas, e de infraestrutura de saneamento básico. No âmbito da saúde humana, é preciso alinhar a resposta em todos os níveis de atenção do sistema de saúde, conectando-a com políticas de saúde específicas.

Iniciativas recentes como a criação o Instituto Paulista de Resistência aos Antimicrobianos e a rede CAMO NET são exemplos de colaborações que tem buscado unir saberes multidisciplinares e produzir evidências em prol da construção de uma agenda de pesquisa mais plural.

Ademais, há a necessidade de melhorar a comunicação e o engajamento com grupos de usuários dos serviços, como pacientes, profissionais de saúde, e gestores que poderiam contribuir para a mobilização de uma agenda política mais eficaz.

Dados recentes sugerem que os grupos mais atingidos são de idosos, recém-nascidos e pessoas gravemente doentes, como pacientes em tratamento de câncer. Além disso, tem se observado o aumento de bactérias resistentes a antibióticos em diversos hospitais brasileiros. No entanto, os desafios para correlacionar a RAM aos índices de morbidade e mortalidade tem dificultado a análise sobre os impactos sociais, econômicos e para o sistema de saúde no nível local.

O desafio da coordenação é grande, mas o Brasil possui um imenso potencial para responder ao problema tendo em vista que conta com um sistema de saúde universal, descentralizado, com políticas de sucesso no controle de infecções e na garantia de acesso a medicamentos, além de um programa de imunizações internacionalmente reconhecido.

O tema da RAM é complexo, mas é possível enfrentá-lo e mitigar seus efeitos. Casos similares ao de Vanessa Carter, que ganhou destaque no evento da AMS, estão também presentes no contexto brasileiro. Para que estes casos não se tornem cada vez mais frequentes é preciso alinhar uma resposta nacional unindo agenda de pesquisa e agenda política e participação social inclusiva.

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