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Mulher grávida, de perfil, em frente a uma parede pixada
A Calixcoca, vacina criada no Brasil em fase final de estudos, contribui para a redução da compulsão pelo uso de drogas e poderá ser uma importante ferramenta no pacote de tratamentos contra a dependência - que inclui ainda o acompanhamento psiquiátrico, psicológico, de assistência social e ajuda da família. AP Photo/Felipe Dana

Vacina brasileira pode prevenir complicações em bebês de mães usuárias de cocaína e crack, além de reduzir adicção

As estatísticas mais recentes - e possivelmente já defasadas - estimam em 20 milhões o número de consumidores regulares de cocaína ou crack no mundo. Desses, um em cada quatro vai se tornar dependente ou desenvolver transtornos em razão do uso.

Entre os dependentes, muitas são mulheres que, ao engravidarem, podem trazer riscos para si mesmas e para seus filhos. O uso da cocaína na gravidez está associado a quadros graves para a gestante (como pré-eclâmpsia grave ou aborto espontâneo) e para os bebês (parto prematuro com complicações, baixo peso ao nascer, malformações e síndrome de abstinência no recém-nascido).

Mas um estudo realizado no Brasil conseguiu uma inovação radical: uma vacina que usa o sistema imune para prevenir as consequências perinatais do consumo das drogas, e que pode vir a proteger os filhos de mães usuárias. Se os estudos clínicos comprovarem a eficácia da vacina, ela poderá ser uma importante ferramenta para complementar os tratamentos biopsicossociais já utilizados no tratamento de pessoas com dependência de cocaína e crack.

Os testes pré-clínicos com a nova vacina em animais já foram realizados com sucesso. Nesse momento, o projeto de pesquisa está buscando realizar o registro deste medicamento experimental junto à Anvisa para o início dos testes clínicos e em busca de recursos para sua realização.

Uma vacina em construção há mais de uma década

Durante o meu doutorado, estudei como nosso organismo produz anticorpos que contribuem com a percepção de alguns sintomas de depressão. Esses anticorpos, induzidos por bactérias intestinais, são capazes de mudar a ação de certos hormônios e neurotransmissores e mudar a nossa percepção, criar sintomas e modificar nossa percepção. Em 2011, quando fiz meu concurso para a UFMG, comecei a trabalhar com a ideia de usar esse conhecimento para a produção de uma vacina contra a cocaína.

Alguns anos antes, haviam sido publicados artigos de um grupo americano que mostravam que a cocaína produzia anticorpos em alguns dependentes que usavam quantidades muito grandes da droga. Eles iniciaram então estudos com o intuito de usar esse mecanismo, que podemos chamar de um mecanismo autodefensivo do organismo, para ajudar pessoas com dependência de cocaína e seus derivados, como o crack.

Eu já estava trabalhando na vacina quando a pesquisa científica esbarrou com a realidade: uma situação trágica que vivemos em Minas Gerais se tornou mais um desencadeador para o desenvolvimento da vacina. Em 2013, o Ministério Público publicou uma norma junto às Varas de Família, obrigando os médicos a notificarem casos de partos de mulheres dependentes de drogas, o que levaria as crianças recém-nascidas para o sistema de adoção. De uma hora para outra, chegaram centenas de mulheres no ambulatório de dependências químicas do Hospital das Clínicas da UFMG, pedindo ajuda para não perderem a guarda dos filhos.

Foi uma situação muito triste. A maternidade é um momento de conflito para essas mulheres, que querem proteger o bebê, mas muitas vezes não conseguem evitar a compulsão de usar a droga. Apenas 25% delas conseguem interromper o uso durante a gravidez.

Mas a ciência também é feita de encontros. Quando expus a questão ao professor Ângelo de Fátima, um dos maiores especialistas em química medicinal do Brasil, ele se propôs a replicar a molécula que os americanos tinham produzido para tentarmos um experimento com ratas grávidas. Um tempo depois conversamos sobre um novo tipo de molécula, que tinha produzido uma resposta imunogênica para o câncer, e dai surgiu uma inovação, uma molécula totalmente sintética, que chamamos hoje de UFMG-V4N2.

Após discutirmos sobre a possível imunogenicidade - capacidade de induzir uma resposta imune - das estruturas moleculares denominadas de calixarenos, acordamos que ele sintetizasse uma molécula nova, batizada de UFMG-V4N2, que é a base da vacina Calixcoca. A UFMG-V4N2, na verdade, é uma plataforma vacinal que pode, virtualmente, ser usada para a produção de outras vacinas, contra a dependência de metafetamina, opióides e nicotina, por exemplo, para as quais já temos desenhos de moléculas em estudo.

Gestação protegida

No estudo com as ratas, observamos que a vacinação induz a produção de anticorpos nas animais grávidas, o que é um grande desafio: a gravidez é um estado de menor resposta imune do organismo, para que o bebê não seja considerado um corpo estranho. A produção de anticorpos em grávidas, portanto, já é normalmente mais complicado e, no caso das usuárias de cocaína, a droga em si também já tem um efeito imunossupressor.

Pela presença dos dois efeitos imunossupressores, imaginamos que seria muito difícil que o mecanismo funcionasse. Mas, paradoxalmente, a resposta de produção de anticorpos foi quase mil vezes maior do que nos ratos machos. É um paradoxo para o qual ainda não temos uma explicação imunológica, mas é uma constatação que abre uma janela de oportunidades bastante interessante caso esse mecanismo se reproduza nos seres humanos.

As ratas vacinadas não tiveram o efeito anorexígeno (falta de apetite) ou de hiperatividade, induzidos pela cocaína, e tiveram uma prole 30% maior do que as não vacinadas, o que indica uma redução de abortos, descolamentos de placenta e outras complicações perinatais. Os anticorpos produzidos foram capazes de bloquear a passagem da droga pela placenta, protegendo os ratinhos. Além disso, identificamos que os anticorpos também passam através do leite; portanto, ao amamentarem, as mulheres, mesmo usando a droga, podem não trazer malefícios aos bebês.

Gráfico mostra uma série de quadros com rabiscos que simbolizam atividade motora dos ratos com uso de cocaína. Nos que receberam placebo, os traços são muito mais fortes.
Gráficos de locomoção da prole da rata tratada com a vacina (parte superior), comparada com as tratadas com placebo (inferior). A atividade basal não diferiu, mas após o consumo de cocaína o grupo placebo teve atividade motora mais intensa do que as vacinadas, sinalizando a proteção dos filhos por meio de anticorpos. Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde (NAVES/UFMG)

Dependência

Para além dos benefícios da vacina para as mulheres grávidas e seus filhos, acreditamos que a Calixcoca pode se tornar também uma importante ferramenta a se juntar ao pacote de tratamento da dependência, que deve envolver ainda acompanhamento psiquiátrico, psicológico, de assistência social e ajuda da família.

Há medicamentos que auxiliam contra outras dependências, como álcool ou tabaco, mas não existe nenhum remédio disponível até o momento para o crack e a cocaína, que são as drogas que mais estimulam o circuito de recompensa do cérebro e, por consequência, têm um poder de causar dependência muito grande. Apenas 20% dos pacientes que se tratam conseguem ficar livres da droga em cinco anos, o que é um resultado bastante ruim.

A UFMG-V4N2 se mostrou eficaz em produzir anticorpos e em fazer com que eles bloqueiem a passagem da cocaína para o cérebro, o que faz com que os animais vacinados tenham uma percepção reduzida do efeito da droga: uma vantagem bastante importante em um tratamento.

Imagem mostra dois cérebros, o do grupo controle com muitos pontos brancos no interior. O da rata vacinada mostra menos pontos brancos.
Cintilografia mostra muito mais moléculas de cocaína chegaram ao cérebro das ratas grávidas que receberam placebo do que daquelas que receberam a vacina. Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde (NAVES/UFMG)

Esse bloqueio se dá da seguinte forma: possuímos um “escudo protetor”, chamado barreira hematoencefálica, que evita que elementos tóxicos, vírus ou bactérias entrem no cérebro, mas, como a molécula de cocaína é muito pequena, ela consegue passar por essa barreira. A vacina estimula a produção de anticorpos, que se ligam às moléculas da droga, aumentando seu peso e tamanho e, com isso, impedindo que elas ultrapassem o escudo protetor. A cocaína fica retida no sangue, mas, como está ligada ao anticorpo, também não age sobre o coração ou as artérias, o que significa a diminuição do risco de overdoses.

A dependência da cocaína e crack é um problema médico, psicológico e social extremamente relevante, ainda sem solução definitiva. Antes mesmo do início dos testes em seres humanos, cerca de 3.500 pessoas já entraram em contato conosco espontaneamente, interessados em participar como voluntários nos estudos clínicos. Por isso, os resultados alcançados até aqui são tão relevantes: não existe nenhum tratamento aprovado por agências reguladoras mundiais para esse fim, e a Calixcoca pode representar uma esperança para milhares de usuários que querem deixar a droga, mas não conseguem evitar as recaídas. Ainda temos um longo caminho a percorrer para concluir o desenvolvimento deste tratamento que pode contribuir para melhorar os tratamentos psicossociais utilizados atualmente no cuidado das pessoas acometidas por uma dependência de cocaína e crack.

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