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Alegoria mostrando menino yanomami, que o Salgueiro levará à Sapucaí. Carnaval deste ano reafirmará sua vocação para mostrar um Brasil que os livros de história não contam. Foto de divulgação

Yanomamis e tupinambás vão invadir a Sapucaí: Carnaval, mais uma vez, valoriza as múltiplas identidades brasileiras

O Sambódromo do Rio de Janeiro vai assistir este ano a dois desfiles extremamente conectados aos povos originários brasileiros. “Hutukara”, proposta da Acadêmicos do Salgueiro, vai se debruçar sobre a mitologia e a cultura do povo yanomami, etnia que ocupa a maior reserva indígena do território nacional, em Roraima, e tem sua população ameaçada pela ação do garimpo na região.

Nosso destino é ser onça”, da Acadêmicos do Grande Rio, tem como ponto de partida o livro “Meu destino é ser onça”, metaficção em que o escritor Alberto Mussa escreve sobre o ato de reescrever os mitos de origem dos tupinambás. Se o Brasil inteiro é terra indígena, como assinala o artista Denilson Baniwa em suas obras, a Sapucaí também vai ser na virada da noite de domingo para a madrugada de segunda-feira, quando as duas escolas desfilam em sequência.

Se o Salgueiro escolhe fazer a crônica daquela que talvez seja a pauta mais aguda deste Brasil do governo Lula, a Grande Rio reconhece, acolhe e borda ficcionalmente a figura da onça como um patrimônio de nosso imaginário, constituído pelos primeiros habitantes do território e recalcado depois pelos invasores brancos.

Nos enredos das duas escolas, além de um mesmo eixo temático visto por perspectivas distintas, o retrato de duas capacidades históricas dos cortejos: funcionar como antena dos movimentos sociais e políticos do país e se transformar em plataforma simbólica para a reconexão do público com as inúmeras bifurcações das identidades brasileiras.

Não são características recentes, mas sofrem movimentos de contração e de retração, como em toda linguagem artística. E é preciso compreender e afirmar os desfiles como uma espécie de pororoca de múltiplas linguagens artísticas, que os posiciona muito além do espetáculo turístico. O desenvolvimento desta encruzilhada de linguagens como “antena” e como “plataforma” é visível desde a origem dos cortejos.

A Acadêmicos do Grande Rio vai desfilar a mitologia da onça, poderosa figura do imaginário dos tupinambás desde muito antes da chegadas dos portugueses ao Brasil. Ademir Junior / Divulgação Grande Rio

Os desfiles competitivos foram criados em 1932, pelo jornal “Mundo Esportivo”, dirigido por Mário Filho. Em 1939, Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, assinou em sua escola aqueles que são considerados o primeiro enredo e o primeiro samba de enredo da história. Com “Teste ao samba”, Paulo inventou não apenas um eixo temático para o desfile, também um tipo específico de samba, composto de modo a acompanhar a odisseia - uma sucessão de alas, trajes e elementos alegóricos que contam uma história.

Escolas de samba, “instituições civilizatórias”

Na exibição da Portela daquele ano, Paulo, que usava uma fantasia de professor, distribuiu diplomas para seus componentes. Um gesto extremamente político, visto que as escolas de samba, que o historiador Luiz Antonio Simas chama de “maiores instituições civilizatórias do Brasil”, são uma invenção dos negros descendentes dos reis e rainhas africanos sequestrados de seu continente para a escravidão no Brasil.

Paulo sabia que muitos que desfilavam na Portela em 1939 não tinham acesso à escola formal, mas, como ele, eram mestres em conhecimentos ancestrais guardados em seus corpos - no canto, na dança, na percussão.

Estes saberes (que eu deveria chamar também, politicamente, de “tecnologias”) foram aprimorados nos subúrbios e nas favelas, territórios nos quais as escolas de samba se enraizaram e fizeram a reunião dos descendentes da diáspora africana. Se a diáspora separou e desintegrou, o samba - elo mais forte das culturas afro diaspóricas no Rio - foi a cola, a sutura e a fagulha de religação. Nos grêmios recreativos, lugares onde essas populações expandiram seus saberes, o samba transformou-se em escola.

A cada enredo, uma agremiação escolhe a história que quer contar. E é compreensível que uma cultura que traz em seu ventre a memória do exílio e da marginalização tenha enorme capacidade empática. Na história recente do país, há inúmeros exemplos desse movimento, como mostra a série “Enredos da liberdade”, dirigida por Luis Carlos Fontes Filho, que estreou em janeiro na plataforma Globoplay.

Enredos abrigam valores identitários

Percorrendo um período que vai de 1980 a 1989, os cinco capítulos mostram como as agremiações cariocas, que já haviam resistido à ditadura militar, foram fundamentais nas disputas narrativas do chamado período da redemocratização.

Em 1985, a Caprichosos de Pilares entrou na avenida com “E por falar em saudade”, cujo o samba lembrava, ironicamente “diretamente, o povo escolhia o presidente/ se comia mais feijão/ vovó guardava a poupança no colchão”. Um ano depois, o Império Serrano cantou “Eu quero”: “Me dá, me dá, me dá o que é meu/Foram 20 anos que alguém comeu”.

A série mostra como, além da crítica direta, as escolas foram fundamentais para a afirmação de valores identitários que haviam sido estrangulados pela ditadura. O reconhecimento da negritude acontece em desfiles como “Kizomba, festa da raça” (Vila Isabel) e “100 anos de liberdade - Realidade ou ilusão” (Mangueira), ambos de 1988, e as identidades originárias ganham especial atenção do carnavalesco Fernando Pinto, que, na Mocidade Independente de Padre Miguel, concebeu “Como era verde o meu Xingu” (1984) e “Tupinicópolis” (1987).

Pinto, que morreu precocemente, foi um pioneiro na abordagem da questão indígena de um modo contemporâneo. Em Tupinicópolis, sua cidade imaginária orientada por valores, terminologias e imagens indígenas, um enorme outdoor com uma onça era um dos destaques do desfile. Não por acaso ele será um dos homenageados de “Nosso destino é ser onça”, no qual os artistas à frente do carnaval da Grande Rio, Gabriel Haddad e Leonardo Bora, lembram outros carnavais em que o felino foi celebrado como cultura.

Bora e Haddad fazem parte de uma geração de jovens carnavalescos que tenho chamado de “narradores” e que tem recuperado o protagonismo do quesito enredo. Dois anos assinalam esse movimento. O primeiro é 2018, que chamei de “carnaval do derrame político” a partir de uma imagem síntese: o presidente vampiro, caricatura de Michel Temer, partícipe do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Ele aparecia no alto de uma alegoria do enredo de Jack Vasconcelos no Paraíso do Tuiuti sobre a escravidão. O segundo é 2019, com mais uma imagem síntese: a bandeira brasileira redesenhada em verde-e-rosa e com a inscrição “índios, negros e pobres”, no desfile campeão da Mangueira “História para ninar gente grande”, com enredo de Leandro Vieira.

O período de 2018-2019 é um momento em que esta geração de criadores enfrenta o recrudescimento político do país e no Rio, que tinha na prefeitura um bispo neopentecostal e fundamentalista, Marcelo Crivella, que cortou as subvenções públicas para os cortejos.

Tal disputa precisa se dar no campo das imagens, como provam o vampiro e a bandeira, mas elas são alimentadas pela teia narrativa, isso é, pela construção de enredos que escolhem desfilar uma odisseia de contracorrente ou, no caso específico de Bora e Haddad, criam desvios e vias marginais ao conservadorismo reinante.

Entre 2018 e 2020, a dupla que hoje está na Grande Rio cria uma sequência de enredos sobre corpos negros marginalizados - do artista do inconsciente Arthur Bispo do Rosário ao o pai de santo Joãozinho da Gomeia.

Em 2022, foram campeões na Grande Rio cantando Exu, orixá que representa o poder de todos os inícios, as encruzilhadas, os labirintos e a mobilidade, e que não por acaso virou o catalisador da satanização das religiões de matriz africana. Com a onça, os artistas voltam sua imensa capacidade narrativa e sua veia plástica e experimental para outro corpo recalcado.

O felino será tratado como uma espécie de fantasmagoria, como o símbolo de todas as invisibilizações sofridas pelos povos originários das Américas, mas também como o vetor de sua resiliência. A onça sobrevive, como defende o enredo, na literatura de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, na arte popular, nas lutas indígenas e pelas florestas, em cada corpo negro ou travesti e queer que se autodeclara “pantera”.

A Grande Rio entra na Sapucaí logo depois que o Salgueiro deixar a avenida. Com “Hutukara”, a agremiação da Tijuca, Zona Norte do Rio, mostra sua capacidade de entrar poeticamente em sintonia com questões urgentes. Nos anos 1960, com o professor Fernando Pamplona à frente de sua equipe artística, a escola empreendeu o que costuma se chamar de “Revolução salgueirense”: uma sucessão de enredos com temática negra e estética africana, que substituíram as propostas laudatórias a vultos da história branca oficial.

O mergulho na cultura Yanomami, realizado pelo carnavalesco Edson Pereira e pelo pesquisador Igor Ricardo, contou com a consultoria do xamã Davi Kopenawa e “A queda do céu”, livro que ele escreveu em parceria com Bruce Albert, foi uma das matrizes do enredo. Kopenawa vai ocupar um lugar na última alegoria da escola, “Brasil cocar”, no domingo, e dois ministros do governo Lula, Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e Silvio Almeida (Direitos Humanos) também vão desfilar.

Desfiles sustentáveis

Ao escrever sobre a proposta de enredo, o sociólogo Bernardo Pilotto destacou a sábia escolha do Salgueiro de não enclausurar os Yanomami na imensa tragédia humanitária a que estão submetidos.

Com a meta de fazer um desfile sustentável, a equipe do barracão da escola abriu mão de elementos associados ao plástico e de compras desnecessárias, reciclando alegorias e fantasias de anos anteriores e investindo na ressignificação de redes, cestas de palha e vime e outros elementos de fibras naturais.

“Hutukara” é o chão sagrado de Omama, figura central na criação do mundo, de acordo com a cosmogonia Yanomami. Foi ela quem protagonizou o protesto que indígenas da etnia realizaram durante a cerimônia do Oscar de 2023.

Aliás, foi de Hollywood que o ator Leonardo di Caprio, um ativista das causas ambientais, postou um vídeo em suas redes sociais apoiando o enredo do Salgueiro e participando de um movimento viral de divulgação, que os salgueirenses chamam de “hutukarização”.

A alegria é um estado de suspensão que pode ser uma das chaves do poder mobilizador da arte, e o Salgueiro quer fazer dela sua “flecha pelo povo da floresta”. O garimpo invadiu a reserva indígena, levando morte, fome, doenças e degradação. O samba, considerado pela crítica musical um dos mais bonitos do ano, lembra que “somos parte de quem parte, como Bruno e Dom” - uma referência ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista britânico Dom Phillips, assassinados em 2022 por denunciarem invasões ilegais.

Mas o que os 3000 componentes da escola esperam mesmo é arrebatar as arquibancadas e o júri com o refrão “Ya te mi xoa” - “ainda estou vivo”. Em enredos como este, a insistência em sobreviver é celebrada como a maior arma do povo Yanomami, mas também do próprio samba, de suas escolas e daqueles que os inventaram.

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