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Ilustração de átomos de carbono em estruturas hexagonais de uma camada de grafeno
Estrutura cristalina de grafeno, um material 2D. Unlimphotos/XStudio3D

A Engenharia de Defeitos em materiais contra a crise climática

A palavra defeito costuma estar associada a algo que ninguém quer, e faz todo o sentido. Imagine alguém oferecendo a você um material que tem muitos defeitos? Pode soar estranho, mas não no campo de materiais bidimensionais (2D) para eletrocatalisadores. Componentes chave para a produção do chamado “hidrogênio verde”, uma das principais fontes de energia alternativas para substituir os combustíveis fósseis na luta contra o aquecimento global, os eletrocatalisadores atuais são feitos de platina, metal caro e escasso na natureza.

Ainda existem muitos desafios na produção e armazenamento de hidrogênio combustível, mas o potencial de utilização em inúmeros setores da indústria com mínimo de impacto no meio ambiente tem impulsionado uma série de pesquisas e investimentos nessa área. O hidrogênio pode entregar até 142 megajoules por quilo, uma quantidade de energia cerca de três vezes maior que os combustíveis fósseis ou outros combustíveis químicos. Produzido de maneira apropriada, o hidrogênio combustível pode ajudar a mitigar o efeito estufa com emissões zero de carbono.

O hidrogênio pode ser produzido por muitas rotas, e uma das abordagens mais limpas é pela quebra de moléculas de água em dispositivos eletroquímicos, gerando hidrogênio e oxigênio nos eletrodos. A cinética dessas reações, porém, é lenta em eletrodos convencionais, demandando o uso de eletrocatalisadores para aumentar sua velocidade. Assim, pesquisadores do mundo inteiro estão buscando novas opções de materiais para estes eletrocatalisadores.

Muito esforço tem sido dedicado à melhoria e otimização de materiais com desempenho semelhante aos atuais catalisadores à base de platina. Para gerar quantidades significativas de hidrogênio por eletrólise, é necessário desenvolver eletrocatalisadores estáveis, mais baratos e eficientes.

Soluções em duas dimensões

A busca por novos eletrocatalisadores para geração de hidrogênio é um desafio de longa data. Mas desde a descoberta do grafeno, em 2004, muito foco foi dado ao estudo das propriedades eletrônicas, ópticas e eletroquímicas de materiais bidimensionais (2D). Sólidos cristalinos com alta razão de aspecto, estes materiais têm espessura muito menor que seu tamanho lateral. Enquanto o tamanho lateral pode atingir milímetros, sua espessura é tipicamente inferior a 1 nanômetro (nm) - um bilionésio de metro - para materiais de camada única, ou monocamada.

Uma das formas de obtenção destas monocamadas é por esfoliação do respectivo material multicamada. No caso do grafeno, ele pode ser obtido por esfoliação de grafite, material lamelar largamente disponível em todo o mundo. Os cristais de grafite multicamada possuem ligações fracas do tipo van der waals entre as folhas, e ligações fortes do tipo covalente nas folhas, possibilitando a esfoliação e obtenção de materiais bidimensionais de inúmeras maneiras. Um exemplo prático da interação fraca entre as camadas pode ser visto em atividades do nosso cotidiano: quando escrevemos ou fazemos um desenho no papel com um lápis, estamos basicamente esfoliando o grafite no papel.

Os materiais lamelares como o grafeno têm duas regiões distintas, conhecidas como plano basal, ou terraço, e região de borda. O plano basal é estável e quimicamente definido, enquanto a região de borda pode apresentar variados grupos funcionais químicos.

Existem muitos materiais que possuem uma estrutura em camadas semelhante ao grafite, como dicalcogenetos de metais de transição (TMDs), carbetos e hidróxidos, entre outros. Mas são os TMDs que estão sendo mais estudados como potenciais eletrocatalisadores para substituir os catalisadores caros à base de platina para produzir hidrogênio. E, dentre os dicalcogenetos de metais de transição, o dissulfeto de molibdênio (MoS₂) é um dos mais promissores, com baixo custo e grande potencial competitivo.

Pedra cristalina branca incrustada com um mineral prateado
Cristal de quartzo incrustado com molibdenita, mineral do qual é extraído o molibdênio. Epitavi/Unlimphotos

Defeitos do bem

O dissulfeto de molibdênio em monocamada é um material de três átomos de espessura (S-Mo-S) muito propenso a formar defeitos com um papel importante no desempenho de dispositivos eletroquímicos. Estes defeitos podem alterar propriedades magnéticas, eletrônicas, ópticas e aumentar a atividade eletroquímica.

No caso de aplicações eletrocatalíticas em reações de desprendimento de hidrogênio (RDH), estudos teóricos e experimentais indicaram que as regiões de borda da camada são cataliticamente mais ativas que as do plano basal. Após essa descoberta inicial, foi dada mais atenção no processo de gerar mais sítios de borda para promover estas reações. Nanoestruturação, engenharia de defeitos e controle de tamanho lateral das camadas são alguns exemplos de técnicas usadas para melhorar o desempenho de dicalcogenetos de metais de transição para aplicações eletrocatalíticas.

Além disso, os sítios de molibdênio (Mo) ou enxofre (S) localizados no plano basal podem ser ativados usando rotas químicas. Estudos recentes mostram que as vacâncias de enxofre (ausência de átomos de S) no plano basal do dissulfeto de molibdênio podem melhorar sua reatividade catalítica. Ao introduzir vacâncias e tensões mecânicas adequadas em monocamadas do material, é possível alcançar alta atividade eletrocatalítica para a reação de desprendimento de hidrogênio. Desta forma, quantidades consideráveis de gás hidrogênio podem ser preparadas a partir do eletrodo usando condições otimizadas de defeitos no material.

Visualizando átomos

Para estabelecer uma correlação adequada entre os defeitos e a atividade eletrocatalítica do dissulfeto de molibdênio para reações de desprendimento de hidrogênio, é de fundamental importância identificar os tipos de imperfeições formadas. Dependendo da rota empregada para criar estes defeitos, as monocamadas de dissulfeto de molibdênio podem apresentar falta de átomos de enxofre (monovacâncias) ou mesmo buracos com tamanho variável. Assim, a identificação de defeitos em monocamadas do material demanda a capacidade de ver e operar em nível atômico com resolução no estado da arte.

Neste sentido, a microscopia eletrônica de transmissão de alta resolução é uma tecnologia chave para estudar defeitos em materiais bidimensionais. A técnica utiliza um feixe de elétrons que, após interagir com a amostra e atravessá-la, possibilita a obtenção de uma imagem que revela a posição dos átomos no material e muitas outras informações. Esta ferramenta permite a identificação precisa dos átomos e fornece um guia poderoso para estudar quais tipos de defeitos resultam em um melhor desempenho para a produção de hidrogênio.

E o Brasil está na linha de frente nesta busca por uma melhor compreensão da relação entre tipo de defeito e atividade eletrocatalítica em materiais 2D. Parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) reúne profissionais de excelência e equipamentos de última geração para síntese e caracterização de nanomateriais.

Além disso, os recentes comissionamento e início das operações do Sirius, uma das mais avançadas fontes de luz síncrotron em funcionamento no planeta - e também parte do CNPEM -, abrem ainda mais o leque de opções à disposição das comunidades científicas brasileira e internacional. É por meio de trabalhos e infraestruturas como estas que o hidrogênio vai se tornar uma verdadeira alternativa aos combustíveis fósseis, amplamente disponível a custos competitivos, ajudando o mundo na luta contra a crise climática.

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