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microfone à frente de um teclado de computador operadopor uma mão feminina
Podcasting como modalidade radiofônica libertou o rádio da “prisão” do ao vivo e, vinculado a uma lógica ativista, trouxe profundas reconfigurações no mercado da comunicação de massa de base sonora. savconstantine/Unlimphotos

Aos 20 anos, podcasting se afirma como arena para comunicar ciência e combater a desinformação

No começo dos anos 2000, alguma coisa diferente estava acontecendo no rádio via internet, que começava a ser ouvido não apenas em fluxo, mas também sob demanda, por assinatura, articulando-se com blogs, audiolivros e programas apresentados por amadores. Em 12 de fevereiro de 2004, em artigo publicado no diário britânico The Guardian, o jornalista Ben Hammersley especulou se o fenômeno merecia um nome específico. E arriscou algumas propostas: “audioblogging”, “guerrilla media” ou “podcasting” (uma junção de “pod” – “módulo”, mas também uma provável referência ao iPod, tocador multimídia lançado três anos antes – com “broadcasting” – em bom português, “radiodifusão”).

Hammersley deu nome, involuntariamente, a um fenômeno que vinha se delineando desde 2000, quando a Netscape, empresa do principal navegador de internet à época, abandonou o desenvolvimento de uma nova tecnologia de distribuição de conteúdos online, o Rich Site Summary (RSS, também apelidado de Really Simple Sindication, ou “distribuição realmente simples”, em tradução livre). Sem perspectiva de monetização no curto prazo, o RSS foi liberado para a comunidade de desenvolvedores que buscava construir arquiteturas abertas para a internet, em contraposição à exploração comercial da rede mundial de computadores.

Um desses desenvolvedores, Dave Winer, executivo-chefe da Userland Software, lançou versões do RSS, antecipando a possibilidade de distribuir vídeo online, em parceria com o ex-VJ da MTV Adam Curry. Mas limitações técnicas levaram a uma mudança de foco para o áudio, cujos arquivos digitais eram bem mais leves.

Em setembro de 2003, Winer criou um feed, espécie de endereço online, e um software, batizado iPodder, permitindo assinaturas de conteúdos distribuídos via internet, que poderiam então ser baixados para computadores ou tocadores multimídia.

Segundo o pesquisador estadunidense John Sullivan, o iPodder foi o primeiro podcatcher, ou agregador de podcasts. Foi uma segunda revolução no rádio online, que já estava em andamento desde a criação das primeiras web rádios, em 1995.

Do ‘ao vivo’ ao ‘sob demanda’

Na esteira da profusão de tocadores multimídia no mercado, da popularização de formatos de compressão de áudio digital como o MP3 e da multiplicação de software e hardware para produção de áudio digital a custo baixo ou zero, o rádio online não estava mais confinado ao streaming ao vivo. Era possível não só efetuar o download dos áudios, mas também listá-los em diretórios online e distribuí-los nos sites de redes sociais que começavam a surgir.

O nome “podcasting” pegou, apesar das críticas de especialistas, que o consideravam propaganda descabida do iPod. Afinal, qualquer dispositivo capaz de ler arquivos em formato MP3 podia ser usado para este fim – e diversos foram lançados, como o Zune, da Microsoft, e o Walkman X Series, da Sony. Nomenclaturas alternativas como audiocasting, netcasting e webcasting, no entanto, acabaram não pegando.

Apesar dessa trajetória estreitamente conectada à radiofonia, pesquisadores como o italiano Tiziano Bonini, o inglês Richard Berry e os brasileiros Andrei Rossetto e Luiz Artur Ferraretto consideram o podcasting um novo meio ou uma extensão do rádio. Prefiro concordar, no entanto, com Andrew Bottomley, para quem se trata de “uma nova prática radiofônica, mais do que um novo meio”.

Entendo o podcasting como modalidade radiofônica, integrante de um campo mais geral do que chamo de “rádio expandido”, conceito que venho desenvolvendo desde 2012. Trocando em miúdos: o que chamamos de rádio nada mais é do que uma comunicação de base sonora, de um emissor para muitos receptores – sejam milhares de ouvintes de uma estação FM, centenas de uma rádio comunitária ou algumas dezenas de um podcast de nicho.

E esta comunicação independe da plataforma. Começou em ondas médias (AM) e curtas, mas não deixou de ser rádio quando chegou à Frequência Modulada (FM), à internet (web rádio) ou mesmo à TV por assinatura (quantas emissoras de rádio podem ser ouvidas por meio da sua TV a cabo ou via satélite?).

Se o podcasting deu seus primeiros passos vinculando-se a uma lógica ativista, do faça-você-mesmo, o mesmo se deu com o rádio nos anos 1920 e 1930, quando ouvintes com menos recursos para importar receptores improvisavam seus rádios de galena.

A única diferença, hoje, é a possibilidade de escuta sob demanda, a qualquer tempo. Ou seja, o podcasting libertou o rádio das ondas hertzianas.

Evidentemente, esse processo trouxe profundas reconfigurações no mercado. Emissoras de rádio concorrem pela atenção da audiência com emissoras de TV, portais informativos, produtoras independentes e até pessoas físicas sem histórico na radiodifusão.

Mas uma breve análise dos rankings dos podcasts mais ouvidos permite perceber que, no Brasil, a maior parte dos conteúdos de maior audiência têm a assinatura de grandes grupos de comunicação, em geral com negócios no rádio.

Veículo para a academia

Se estamos falando tanto de mercado, por que o podcasting seria, então, importante para o meio acadêmico? Porque vem se tornando uma forma relativamente barata de atingir públicos cada vez maiores.

O Brasil é um dos mercados de podcasting mais dinâmicos do mundo. A produção e o consumo de conteúdo em áudio ganharam ainda mais ímpeto durante a pandemia de COVID-19. Em 2020, segundo dados da Voxnest, o Brasil era o quinto país com crescimento mais acelerado no número de ouvintes de podcasts, atrás apenas de Turquia, Índia, Colômbia e Argentina. Entre janeiro e maio daquele ano, a produção de podcasts em língua portuguesa foi a que mais cresceu: 103%, à frente dos podcasts hispânicos, com 94% de expansão. O Brasil liderou o ranking de criação de podcasts no período.

Não se sabe ao certo quantas pessoas ouvem podcasts no país, mas todas as pesquisas apontam para números expressivos. Levantamento do Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) encomendado pelo Grupo Globo apontava, em 2022, que 23% da população com 16 anos de idade ou mais tinham ouvido ao menos um podcast nos 12 meses anteriores. Seriam 38,6 milhões de ouvintes, um crescimento de 84% na comparação com 2019.

Outro estudo, da plataforma CupomValido.com.br, a partir de dados da Statista e da Kantar Ibope, estimava que, no mesmo período, a audiência de podcasts chegasse a 40% da população, o que, proporcionalmente, colocaria o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial de consumo, atrás apenas de Suécia e Irlanda.

Estudo mais recente, publicado pela PodNews, calcula que a audiência no país já chegaria a 51,8 milhões de pessoas e projeta que, em 2027, a América Latina, graças ao Brasil, terá mais ouvintes de podcasts do que qualquer outra região do planeta.

Seja qual for o número que mais se aproxima da realidade, é evidente a relevância crescente do podcasting no ecossistema midiático, e a academia precisa estar atenta às possibilidades de divulgação científica, tecnológica e de inovação, bem como aos riscos de aumento na circulação de desinformação, discursos de ódio e negacionismo. O podcast mais ouvido nos EUA, Joe Rogan Experience, que mantém contrato de mais de US$ 100 milhões com o Spotify, foi alvo de diversas críticas por abrir espaço a discursos antivacina em plena pandemia.

Já no Brasil, em fevereiro de 2022, o Flow Podcast afastou seu fundador Bruno Monteiro Aiub, o Monark, após o apresentador defender o direito de pessoas serem antissemitas e formarem um partido nazista no país – os Estúdios Flow, que tinham faturamento mensal de R$ 1,5 milhão, tiveram as receitas zeradas devido à repercussão negativa do caso. Mas, apenas um ano depois, já tinham voltado ao azul e previam faturamento de R$ 30 milhões; a produtora tem 11 podcasts ativos e mais de 5 milhões de inscritos em seu canal no YouTube.

O problema dos algoritmos

Pesquisadoras e pesquisadores de mídia sonora têm se dedicado ao tema no Brasil, não apenas investigando as dinâmicas de desinformação, mas também explorando o potencial do podcasting para a construção de um jornalismo educador e mapeando iniciativas de divulgação científica em universidades brasileiras.

Especialmente após a pandemia, surgiram dezenas de podcasts oferecendo conteúdo informativo para o enfrentamento à COVID-19, incluindo iniciativas inovadoras de uso de radiodrama para dinamizar a circulação de informações de saúde pública durante a emergência sanitária.

Hoje há podcasts de alto nível, com os mais diversos perfis, que ajudam a combater a desinformação e sancionar saberes ancorados no conhecimento científico, abrangendo variados formatos de jornalismo narrativo, como Rádio Novelo Apresenta, Ciência Suja e Rio Memórias, e divulgação científica em sentido mais estrito, como A Hora da Ciência, Ciência no Dia a Dia e Minuto Planta Ciência.

Claro, é preciso avaliar o alcance de iniciativas de divulgação científica como estas, pois o podcasting opera na lógica da plataformização, com forte mediação algorítmica. Podcasts de enorme popularidade, como Nerdcast, superam a marca de 1 bilhão de downloads, enquanto projetos dedicados a informar a população sobre como funciona a ciência ficam, em geral, restritos a nichos específicos, sem visibilidade nas interfaces das principais plataformas.

Isso nos leva à discussão premente sobre regulação das plataformas: é preciso ter regras de transparência nos algoritmos, para evitar que os ouvintes recebam sempre mais do mesmo, e possibilitar que os conteúdos de divulgação científica furem as bolhas, chegando a públicos mais amplos. E é preciso remunerar o conteúdo informativo de qualidade, incluindo-se aí aquele produzido nas universidades públicas brasileiras, assim como é essencial desmonetizar a desinformação, o ódio e o negacionismo científico.

Os 20 anos do podcasting põem em evidência o potencial fabuloso da comunicação sonora, da velha e boa contação de histórias, hoje com múltiplos canais de distribuição e possibilidades de circulação – do rádio a pilha ao telefone celular. Podcasts oferecem a possibilidade de pesquisadoras e pesquisadores comunicarem ciência, não apenas dando entrevistas curtas e fragmentárias, mas construindo sua própria narrativa. Cabe a cada um de nós explorar suas potencialidades, aprendendo com as experiências de mais de um século de desenvolvimento da linguagem radiofônica, para virarmos o jogo contra o circo das fake news.

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