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O presidente Lula e a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, durante a cerimônia de sanção da Nova Lei de Cotas, ano passado: argumentos desgastados e opiniões sem base na realidade jogam contra a democratização do ensino superior no Brasil. Pedro Ladeira/Folhapress

Educação: Mesmo bem-sucedida, Lei de Cotas segue sendo atacada por setores do Congresso e da mídia

Artigos de opinião e editoriais de dois dos maiores jornais brasileiros atacam a reserva de vagas nas universidades públicas mesmo depois da aprovação no Congresso Nacional da revisão da Lei de Cotas. A Lei, que entrou em vigor no dia 14 de novembro de 2023, atualiza a legislação de 2012, e prolonga, até 2033, a reserva de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas.

Dentro destes 50% destinados aos cotistas, sendo metade delas para estudantes cuja renda familiar seja de até um salário-mínimo e a outra metade para estudantes com renda per capita acima desse corte. Também leva-se em conta os negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência de acordo com a porcentagem desses grupos na população do respectivo estado.

Ao mirar a democracia brasileira a partir da abordagem deliberativa, espera-se um debate informado e permanente das leis concernentes à coletividade. Do ponto de vista da institucionalidade, o debate inicia com a primeira proposição de cotas, em 1983, quando o político, artista e ativista Abdias do Nascimento apresentou projeto com reserva de vagas para todos os âmbitos do governo, empresas e educação. Quatro décadas depois, o debate segue sem que os que são contrários às cotas tenham reformulado o argumento, o que faz o debate parecer um déjà-vu. À guisa do que esse debate poderia ter sido superado, façamos um exame dos argumentos contrários às cotas e dos atores desse debate.

Julgamento das cotas

Há duas décadas, a Folha de S. Paulo defendeu que as “cotas não vão sanar o deficit de formação acumulado pelo aluno. Tampouco garantirão a permanência do estudante pobre durante anos em cursos que não raro exigem dedicação integral.” O jornal pouco mudou o argumento em vinte anos.

Em editorial recente, a Folha defende que “não há critérios objetivos e coerentes para diferenciar pardos de brancos”. O processo para a criação da Lei de Cotas seguiu um amplo debate público em diversas arenas: nas universidades, na imprensa, no judiciário, inclusive com um julgamento da constitucionalidade sua aplicação na mais alta corte brasileira. Depois de 13 anos de debates públicos, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou as cotas constitucionais.

O debate seguiu no parlamento. Por fim, passou por todo processo legislativo: tramitação e com aprovação em dois turnos na Câmara dos Deputados e Senado Federal; respectivamente em 2012 e em 2023.

A Lei de Cotas seguiu o rito democrático, tanto do ponto de vista institucional, quanto do ponto de vista do debate público. Todas as posições: favoráveis às cotas; contrárias às cotas raciais; favoráveis às cotas sociais e não às raciais foram exaustivamente debatidos na esfera pública.

Cotas sociais

Em 2012, foi aprovada no Congresso Nacional a proposta de consenso e, em 2023, mais uma vez prevaleceu a proposta construída a partir do diálogo de parlamentares das mais diferentes matizes ideológicas. Parte dos movimentos negros pediu cotas raciais, mas vale ressaltar que foram aprovadas as cotas sociais, com subcotas levando-se em conta grupos de negros (pretos e pardos); indígenas, pessoas com deficiência e, nessa última revisão, quilombolas. Portanto, o argumento de que deveriam ser cotas sociais é, no mínimo, impreciso. As cotas são sociais, desde a aprovação em 2012, com subgrupos raciais.

Com pouco mais de dez anos de implantação da Lei de Cotas, o debate não deveria ser balizado apenas em posições pessoais, já que é possível ter acesso às pesquisas que monitoram os resultados dessa política. É um direito de qualquer cidadão ser contra o que quiser. Tem quem ache que a Terra é plana. Mas qual o valor de uma opinião sem qualquer lastro?

A realidade é que as cotas mudaram a cara das universidades públicas brasileiras: a diversidade pode ser vista nos campi. As pesquisas que avaliam o perfil dos estudantes apresentam um aumento do número de estudantes provenientes da escola pública, estudantes negros e indígenas em todos os cursos, inclusive nos mais concorridos como o Medicina. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o número de estudantes pretos e pardos nas universidades federais aumentou para 52% em 2020.

Essa mudança no corpo discente da graduação reflete significativamente na pós-graduação. Não houve nenhuma queda na qualidade e no desempenho das universidades, como os contrários apregoavam. Um estudo de 2021 mostra que as universidades analisadas tiveram um ganho de nota média da prova de conhecimentos específicos se comparadas as provas de 2013 e de 2019 do Enade.

O argumento que as cotas são uma espécie de discriminação também é bastante questionável. O questionamento cai por terra uma vez que a renda per capita é um dos critérios exigidos para que o estudante possa ingressar no ensino superior por meio dessa modalidade. No mais, a reserva de vagas em universidades públicas, ou seja as cotas, existe no Brasil enquanto política pública muito antes da Lei de Cotas. A chamada Lei do Boi garantiu a reserva de vagas para agricultores e filhos de agricultores no ensino público federal. A Lei do Boi vigorou por duas décadas, de 1964 a 1985.

Por trás do argumento de quem se posiciona contra as cotas raciais, o que há? As cotas permitem às pessoas pobres, negras e indígenas entrarem na disputa de um dos maiores bens da sociedade: a educação. Quando chegam nesse lugar os caminhos se abrem para o mercado de trabalho: são jornalistas, médicos, advogados, arquitetos. Articulistas podem cristalizar na mera opinião e esconder o ranço em relação à diversidade a partir de argumentos publicamente defensáveis?

Ações afirmativas

Por fim, o articulista do Estadão Fernando Reinach escreveu um artigo de opinião, para fazer críticas às cotas, em especial as comissões de heteroidentificação. Nas palavras dele, “tribunais raciais”, que existem para “classificar e privilegiar pessoas com base em sua raça e ainda trazer de volta o racismo para o vestibular”.

Os donos de escravos, no final do século XIX, também não aceitavam o fim da escravidão, um regime político e econômico baseado na exploração da mão de obra de negros. Vale dizer que não estamos diante de uma questão de opinião quando nos referimos às cotas, da forma como escolhemos a cor da roupa que vamos usar no dia. Estamos tratando de uma luta dos movimentos negros que vêm desde o pós-abolição para que as pessoas negras tenham direito à educação. E não é difícil encontrar dados. O Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas articula núcleos de pesquisa que produzem dados e análises sobre a política de cotas no ensino superior brasileiro.

O argumento de Reinach é bem empoeirado para dizer o mínimo. O mesmo argumento foi, inúmeras vezes, direcionado a Abdias do Nascimento, então deputado federal, por seus colegas de parlamento. Ao que ele respondeu: “A nossa luta de negro não está desvinculada das reivindicações dos oprimidos deste país. Mas isso não quer dizer que não tenhamos os nossos problemas específicos. Nenhum outro pobre de qualquer outra raça, nem os nossos irmãos palestinos, judeus ou asiáticos, foi escravo por 400 anos aqui no Brasil. Somente nós.”

Vinícius Luiz, Gabriel Araújo e eu nos propusemos investigar a maior política afirmativa do Brasil, no livro reportagem “Vidas Inteiras - Histórias dos 10 anos da Lei de Cotas” . Não há como não se emocionar diante da história de cotistas. A entrada no ensino superior representa revoluções para os estudantes, para as famílias, para as comunidades onde estão. Sem a menor sombra de dúvidas: uma revolução para o Brasil

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