Menu Close
Recentes decisões judiciais e atos legislativos de questões agrárias na Amazônia contradizem posicionamento internacional do Brasil na questão socioambiental. AP Photo/Eraldo Peres

Exclusão dos povos originários de políticas fundiárias regionais enfraquece discurso sociombiental do Brasil

Em entrevista realizada em 2020, o pensador francês Bruno Latour entrelaçou as múltiplas crises que a humanidade vêm enfrentando: política, econômica e socioambiental. A sobreposição das crises ficava latente no contexto da pandemia de COVID-19, com um agravamento colocado pelo negacionismo científico e climático. Quando questionado sobre as perspectivas para o Brasil, respondeu: “se vocês administrarem uma solução, vocês salvam o resto do mundo”.

A vitória de Lula na eleição presidencial em 2022, possibilitou um esfriamento da crise política e uma sinalização para o combate às crises econômica e socioambiental. Passado um ano de governo, a expectativa dos brasileiros e do mundo dialogaram com as expectativas de Latour. Qual seria a solução do Brasil para os desafios contemporâneos?

As palavras chaves da esperada solução foram enunciadas na COP-28: “economia verde; transição energética; mercado de hidrogênio; crédito de carbono” e “bioeconomia; biodiversidade; redução do desmatamento”. No ímpeto de responder às “mudanças climáticas” – o problema sublinhado internacionalmente, com mais de 141 menções no relatório do IPCC de 2023 -, os discursos dos atores governamentais navegaram reiteradamente por essas palavras, na busca do consenso.

O ponto de inflexão, que dialogou com as demandas de representantes da Articulação dos Povos Indígenas e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, foram as palavras de Sônia Guajajara: “precisamos falar dos territórios”.

A violência no campo, a sobreposição de territórios, e os processos de reconhecimento e regularização de terras de povos e comunidades tradicionais, por terem raízes profundas e coloniais, sofrem com a miopia da sociedade nacional e internacional. Em alguns momentos estão muito distantes das realidades urbanas e não são vistos. Em outros, quando é do interesse da manutenção do poder político, são puxados para perto e “solucionados”.

Quatorze dias após o encerramento da COP em Dubai e três dias após o Natal, o presidente do Senado promulgou a Lei 14.701, conhecida como “Marco Temporal das Terras Indígenas”, em paralelo às diversas manifestações contrárias nacionais e internacionais.

No Maranhão, política fundiária marcada por retrocessos

Na mesma toada, o estado brasileiro líder em conflitos agrários sancionou a Lei 12.169/2023 – apelidada de “Lei da Grilagem”. Aprovada no dia 19 de dezembro, é o segundo projeto da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão que afronta os direitos conquistados de povos e comunidades tradicionais. O PL 736/2023, ainda em tramitação, objetiva extinguir a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV).

O Maranhão é profundamente marcado por uma longa história de conflitos agrários e ambientais, envolvendo milhares de famílias. Nos últimos 35 anos, em razão desses conflitos, cerca de 155 trabalhadores rurais foram assassinados. Outra marca da violência são os despejos de comunidades, situação esta que se tornou mais intensa nos últimos 15 anos.

Somente em 2023, 38 casas de trabalhadores rurais foram destruídas por tratores ou incendiadas em decorrência de conflitos, conforme dados da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras (FETAEMA). Ainda de acordo com a Federação, em 2023 ocorreram 229 conflitos no campo, afetando diretamente 39 mil famílias em 76 cidades.

Em decorrência da expansão da fronteira agrícola sobre o cerrado maranhense, houve aumento expressivo das denúncias de casos de grilagem de terras públicas, de presença de milícias rurais e ampliação do desmatamento. Em 2023, o Maranhão foi a unidade da Federação que mais desmatou o cerrado, conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, e o estado mais violento contra comunidades quilombolas, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Sem combate à violência no campo não há evolução

Diante dessa realidade, as palavras chaves da esperada solução do Brasil parecem não se encaixar. Quando, onde e como entra o combate à violência no campo? Como se fazer visível a realidade do estado com maior número de municípios da Amazônia Legal? Há um abismo entre o ímpeto de “salvar o planeta” e a audácia de preservar as vidas dos quilombolas de Jaibara dos Rodrigues, comunidade rural do município maranhense Itapecuru-Mirim.

Diante da perplexidade frente às medidas legislativas propostas pelo poder público do Maranhão, o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar se posicionou no dia 29 de dezembro, através de uma nota contra as medidas. Os atores relevantes da pauta, como FETAEMA, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movimento Sem Terra (MST) e outros também fizeram suas manifestações no período entre natal e ano novo.

Ainda em dezembro, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG) protocolaram duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, junto ao Tribunal de Justiça do Maranhão e ao Supremo Tribunal Federal.

Para a CONTAG, a Lei 12.169/2023 acabou por excluir os povos e comunidades tradicionais da política pública da regularização fundiária, verificando-se que os agricultores familiares, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu e outras pertenças étnicas tiveram direitos suprimidos no que se refere à esfera de proteção normativa.

Impactos na COP-30

Enquanto o Brasil se prepara para a COP-30, a primeira COP “no coração da Amazônia”, o Maranhão, estado que tem coração da Amazônia, Cerrado e Mata dos Cocais, com uma imensa diversidade social, ambiental e territorial, e uma profunda riqueza cultural, caminha para a aprovação de duas legislações inconstitucionais em paralelo com o Marco Temporal.

Se a mobilização para evitar o aquecimento global acima de 1,5°C continuar caminhando em vias distantes da governança de terras, as expectativas para o evento em Belém em 2025 podem ser reduzidas. Por outro lado, se o Maranhão for visto como Brasil e achar soluções para si, reconhecendo a existência e preservando a vida dos povos e comunidades tradicionais, pode, nas palavras de Latour “salvar o resto do mundo”.

No último dia 26 de janeiro, a Comissão Pastoral da Terra lançou o cartaz oficial da Campanha Contra Violência no Campo. A data é uma homenagem a Fernando dos Santos, Edvaldo Pereira e Bernadete Pacífico, e fará memória à luta destes três mártires da violência no campo.

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 182,800 academics and researchers from 4,948 institutions.

Register now