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Funcionários públicos e militares entregam donativos às vítimas da enchente em Porto Alegre: uma das notícias falsas mais prejudiciais à população durante as cheias no Sul dizia que o governo estava atrapalhando as doações. EVANDRO LEAL/Agencia Enquadrar/Folhapress

Limites aos super-espalhadores de notícias falsas podem preservar a sociedade em situações extremas

O Rio Grande do Sul passou recentemente pela maior emergência climática desde o início do século 20. As inundações causaram mais de uma centena de mortes e prejuízos materiais incalculáveis. Estima-se que mais de 2 milhões de pessoas foram diretamente afetadas. Os eventos de 2024 só se comparam com a grande enchente de 1941. No entanto, um agravante às enchentes é novidade: a enxurrada de desinformação que tomou conta das redes sociais.

Desinformação consiste em informação falsa espalhada com a intenção de enganar. No caso, há uma confluência de narrativas falsas abordando diferentes aspectos, todos espalhando narrativas muito populares entre militantes de extrema direita.

O script é quase sempre o mesmo, misturando teorias da conspiração, negação da visão científica do mundo e uma suposta ineficiência do Estado no combate às catástrofes. E tudo indica que, se nada for feito, os brasileiros serão cada vez mais vítimas de ondas de desinformação disparadas por políticos de extrema direita e colaboradores.

Um ecossistema alimentado por super-espalhadores

Para entendermos o fenômeno, precisamos entender como funciona o ecossistema da desinformação. As notícias falsas, em geral, se originam de um número relativamente pequeno de fontes e são amplificadas nas redes sociais. Aí entra em ação um mecanismo perverso: notícias falsas se propagam com muito mais facilidade que notícias verdadeiras, especialmente se envolvem apelo político.

Curiosamente, o grande impulsionador da desinformação não são os bots, programas de computador que imitam humanos e reproduzem conteúdos com grande eficiência. Enquanto bots disseminam de forma similar notícias falsas e verdadeiras, humanos são muito mais eficazes para amplificar o alcance de notícias falsas.

As pessoas são muito suscetíveis às emoções despertadas pelo apelo a supostas conspirações, injustiças ou intenção de enganar denunciadas nas notícias falsas. Assim, políticos extremistas contam com um mini-exército de amplificadores de suas mensagens que acabam permeando por toda a sociedade.

Mas é importante notarmos que a maior parte das mensagens com desinformação parte de poucos usuários, os super-espalhadores, e depois são amplificadas por uma massa de usuários que com eles se identifica. E esses mecanismos de impulsionamento de desinformação na enchente não são diferentes de eventos anteriores.

Nas eleições e também na pandemia de covid, algoritmos de recomendação já haviam formado comunidades de seguidores que ficam expostas somente às postagens originadas de super-espalhadores de desinformação, praticamente sem contato com fontes de informação fidedignas.

O cenário formado por bolhas de desinformação intransponíveis, em que os usuários ficam expostos somente a postagens feitas por pessoas que pensam de forma similar e praticamente isolados do resto da rede, já estava pronto no início da enchente. Isso certamente ajudou muito na efetividade do processo.

Uma enxurrada de desinformação

A desinformação nas enchentes do Rio Grande do Sul se deu em diferentes níveis: negar o aquecimento global, atribuir intenção humana (ou mesmo divina) à causa das inundações (ressuscitaram até o projeto HAARP, que estuda a ionosfera usando antenas instaladas no Alaska e que habita o imaginário conspiratório há décadas), inflacionar o número de vítimas, atribuir toda a ação de salvamento e mobilização a “cidadãos de bem” que, apesar do Estado, conseguem individualmente socorrer as vítimas.

Não por acaso, as fontes dessas notícias falsas são as mesmas que disseminaram desinformação na pandemia de covid. Os objetivos são difusos: engajar e radicalizar seguidores contra “tudo que está aí”, causar pânico e caos, atribuir culpa pela situação não só ao governo mas a todo o sistema político, negando a importância do Estado. As peças de desinformação têm geralmente um conteúdo emocional, fundamental para sua difusão e amplificação.

Como os criadores de desinformação conseguem impactar emocionalmente as pessoas? Alguns exemplos são emblemáticos: um influenciador identificado com a extrema direita, pré-candidato a prefeito de São Paulo, denunciou em suas redes sociais que caminhões carregados com donativos para o Rio Grande do Sul teriam sido autuados por excesso de peso e por exigência de nota fiscal.

Ele argumentou que isso teria ocorrido por atuação direta do governo do Rio Grande do Sul para supostamente atrapalhar ações de entidades privadas. A denúncia causou justificada indignação na população. Ninguém pode achar razoável bloquear donativos por não terem nota fiscal, afinal não se trata de comércio. Muita gente amplificou essa grave denúncia para suas redes de contatos. O fato chegou a ser noticiado por uma grande rede de TV (que mais tarde publicou uma retificação, mas o estrago já estava feito).

A ANTT, autoridade que controla as rodovias brasileiras, chegou a publicar uma nota desmentindo a notícia falsa. Na realidade, alguns caminhões foram averiguados por excesso de peso. Numa situação de emergência, não queremos que as estradas sejam danificadas por caminhões com excesso de peso.

Mesmo sabendo que não havia nada em relação a notas fiscais, o influencer intencionalmente adicionou essa parte falsa à notícia para garantir sua rápida e eficaz disseminação, e consequente desaprovação em relação às autoridades. A agenda oculta nessa notícia é uma das bandeiras da extrema direita mundial: a de que os governos, em lugar de auxiliar, atrapalham o cidadão.

Mesmo com todos os desmentidos, a opinião contrária ao manejo da enchente pelas autoridades já estava estabelecida em parte da população. Referências a esse falso fato nunca deixaram de circular.

Outro caso problemático ocorreu quando uma equipe do Exército recebeu, através de um grupo de Whatsapp, a notícia que um dique havia se rompido. Sem verificar a veracidade da informação e agindo por impulso, como quase sempre ocorre em casos nos quais a desinformação é amplificada, eles imediatamente começaram a orientar a imediata evacuação de moradores do bairro Mathias Velho, em Canoas.

A ação teve consequências sobre a população do bairro. Os militares foram depois afastados, confirmando seu despreparo, que criou ainda mais problemas em uma situação já bastante frágil.

Ataque da extrema direita à ciência

Confirmando que a circulação de desinformação relativa à enchente é parte de uma estratégia de políticos de extrema direita brasileiros, o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadores do NetLab dessa universidade, que monitora e analisa a circulação de desinformação em redes sociais, foram convocados para uma audiência pública na Câmara de Deputados por políticos de extrema direita.

O laboratório é “acusado” de ser financiado pelo governo e também de receber “verbas de fundações globalistas privadas” (sic). Como apontado pelo reitor da UFRJ, o requerimento tem o claro objetivo de intimidar e inibir os estudos sobre desinformação e pressionar os pesquisadores a desistir de seus temas de pesquisa em anos eleitorais.

Como limitar o alcance da desinformação?

Uma estratégia muito defendida para se tentar anular ou ao menos limitar o alcance dessas ondas de notícias falsas é a formação do público. Isso pode evitar que o cidadão comum se torne amplificador involuntário de desinformação. No entanto, isso exige um nível de maturidade e cooperação por parte do público que dificilmente poderá ser atingido e na prática é pouco efetivo.

As pessoas que mais acreditam em pseudociência têm perfil paranóico, são narcisistas, religiosas/espirituais, com relativamente menor capacidade cognitiva e são as mais propensas a acreditar em teorias da conspiração. Consequentemente, são também mais propensas a agir como amplificadores de desinformação.

Como os super-espalhadores são relativamente raros, intervenções que os limitem ou que imponham limites ao compartilhamento de suas postagens podem ser altamente eficazes na redução de uma grande parte da exposição a notícias falsas nas redes sociais. Isso implica em impor regulamentação às plataformas.

O assunto é muito polêmico, mas talvez fundamental para preservar a sociedade em situações extremas. Se nada for feito, o cenário deve se repetir na próxima catástrofe natural ou mesmo nas próximas eleições.

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